Vivian Heringer Pizzinga nasceu no dia 23 de julho de 1979, no Rio de Janeiro (RJ). Poeta e psicanalista, tem mestrado e doutorado em Saúde Coletiva (Instituto de Medicina Social da Uerj). Lançou Ruído nos Dentes (Urutau, 2022, poemas), A primavera entra pelos pés e Dias roucos e vontades absurdas (Oito e meio, 2015, 2013, contos). Tem textos publicados em revistas literárias e sites de literatura. Foi finalista do concurso Cuéntame um cuento, 2020, da Universidade de Salamanca em parceria com o Museu da Vida, da Fiocruz, e finalista ainda da categoria Crônicas do Prêmio Off-Flip 2022.

ruído nos dentes

eu queria uma angústia cuja sensação (doce, sempre doce)
fosse mais que um ruído nos dentes.
que pudesse ser aspergida
(essa sensação sempre doce)
desde o palato até o fio da coluna.
que o formigueiro que dela proviesse
valesse a pena todo esforço.
que o esforço fosse mais que um palato, um ruído, um dente.
e que fosse breve,
se não doce,
ao menos breve.

viga-mestra

coleciono noites. olho aberto deslizando impune sobre prateleiras,
livros, cinzeiros, hélices de ventiladores, olho aberto avançando
sobre os escombros do que sobrou do dia, há certa mudez
ressoando nos quadriláteros adjacentes à sala estupidamente
calada. coleciono delinquências íntimas no caminho do baixo
ventre, eloquência insuspeita que não deixa pistas, caminho
borrado das 3 da manhã ou mais, coleciono horas mortas em
dias úteis, escassas tardes no que há de ar nos pulmões, e é quase
nada. coleciono asfixias, apneia viga-mestra num punhado de
hesitações, olho aberto percorrendo a dúvida, vida esporádica
percorrendo o chão. na contabilidade dessa vigília endêmica, é
dia sim, dia não que se dorme. coleciono olhos abertos em seu
escrutínio pela noite desprovida de bordas, avermelhadas pupilas
de quem há muito se perdeu do caminho do sossego, e note:
nenhuma gota a mais resolve o impasse. coleciono solilóquios.
deslizes. dias amanhecendo em qualquer época do ano.

coleciono ecos.

azia

minha língua:
hospedeira de um gosto de cobre imemorial.
o tempo pausou esse insistente paladar.
há algo de errado rodeando os dentes
rangê-los não basta.
moléculas estrangeiras se espalham na boca
angústia parasita que sabe de cor a cartografia
de túneis orgânicos insuspeitos.
o bicho sobe do peito à garganta
quica nos arredores da goela
navega na saliva espessa
instala-se na fofa gengiva pálida.
o bicho metálico forma um cuspe azedo
que lanço no chão gelado
é inverno.
volto a sentir sede
mas beber água não basta.
o gosto de moedas velhas persiste
a náusea exala cheiros.
azia é a roupagem de um drama que falho em nomear.

lógica imberbe da vida

os dias desagregados,
lógica imberbe da vida,
faziam-lhe mossa nos olhos e dentes.
lonjuras de desânimo vencido
curtido
desenhavam-se no semblante planície.
o desespero da alegria alheia
excesso de cores e gestos
lanhavam a superfície preguiçosa da casca.
cansara, enfim, da faina
e de certa loucura embevecida
sob medida.
cansara
e era preciso admitir.

*
vozerio de carros, ônibus, embrenhando-se no feltro do asfalto.
índices da cidade acontecendo sob a janela cerrada. afunda-se
num recôndito lençol fajuto, há meses forrando a cama.
olhos fechados em intensidade máxima. no peito, o emplastro
enjeitado do rumor que o desânimo provoca. tapa os ouvidos no
momento em que a cócega vira dor. a falência dos dias mais uma
vez ronda a cidade a procurá-la, a resseca íntima e anfitriã da
náusea era desprovida de festejos, nenhum sinal de alegria prévia.
ardia (e muito) a memória recente.

parêntesis

quero entrar entre parêntesis, ficar ali de butuca, desviando da
vida, driblando os fato, dar uma parada no giro ao redor, espiar
(imune) os quiproquós, quero respirar sem ruído, evitar os perigos,
ser distante de mim, quero voltar atrás e pular etapas, desenhar
meus dias, colorir a semana inteira, pendurar a arte no mural,
antes que não dê mais tempo, quero um parêntesis sabático.

*Poemas do livro “Ruído nos Dentes”, Editora Urutau, 2022.