Mauro Ramos da Mota e Albuquerque nasceu em Nazaré da Mata, Pernambuco, a 16 de agosto de 1911. Poeta, professor, jornalista e memorialista, foi um dos principais representantes do regionalismo na literatura brasileira, durante o Século XX. Foi membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito em 8 de janeiro de 1970, para ocupar a cadeira 26, do patrono Laurindo Rabelo. Como poeta destacou-se por escrever elegias, sonetos, baladas e rondós, com descrições narrativas extremamente simbólicas, detalhando em imagens as espontaneidades comuns ao cotidiano. Faleceu no dia 22 de novembro de 1984, no Recife.

A mesa

A mesa limpa. Aonde foram
os seus convivas? À longa
sesta. Outros, cambaleantes,
rondam o abismo do sono.
(Matou-lhes a mesa a fome
infantil das sobremesas.)

Elástica no casamento
do bisavô, mais agora.
Tomou a elasticidade
que a morte dá. Espichou-se
a mesa que, mesmo viva,
era um palco de velórios.

Os talheres assassinos,
no lastro, as carnificinas.
Cardápios pingando sangue.
As barbatanas no azeite.
Os voos no molho pardo.

(Decisões familiares,
cartas do jogo, outras cartas
escritas na cabeceira.)
Tíbias cruzam-se debaixo,
mas, com suas pernas secas,
move-se a mesa, a mesa anda
na sala mal-assombrada.
A mesa range e o rangido
não é a dor da madeira.
(A toalha, a mortalha branca,
e, em cima das mesas, a poeira
dos comensais deglutidos.)

Elegia nº1

Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.
Delas agora, sem querer, libertas
a alma dos gestos e, dos lábios quentes
ainda, as frases pensadas só em certas

tardes perdidas. Sob as entreabertas
pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,
mundos de imagens que, às regiões desertas
da morte, levarás, que a morte sentes

fria diante de todos os apelos.
Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,
teus cabelos voando! ah! teus cabelos!

Gosto do desespero e despedida,
para ficares de qualquer maneira
pelos fios castanhos presa à vida.

Arte poética

Elabora o poema como
a fruta elabora os gomos,
a frutas elabora o suco,
a fruta elabora a casca,
elabora a cor e sobre-
tudo elabora a semente.

Os sapatos

Emborcados sob a cama
ambos caíram de bruços
como se na madrugada
contra o assoalho comprimissem
bocas abertas e mudas
de inilibertáveis soluços.

São dores vindas de longes,
retalhadas no curtume,
lembranças dos campos verdes
que a meus desesperos se unem,
feridas as epidermes
nas pedras pontiagudas.

Pendentes os dois cordéis
como dois nervos expostos
que se enxertam nos meus pés,
não os levo, eles me levam,
compassadamente juntos,
são barcos nas poças d’água,
esquifes dos pés defuntos.

Nos cemitérios urbanos
vamos sepultando os passos,
passos jamais repetidos,
uns certos, outros em falso.
(Todos diminuem a viagem,
que os roteiros diferentes
vão dar na mesma estalagem.)
Ó sapatos soluçantes
molhados (da água da chuva?)
dançamos no tempo gasto
a valsa lenta de abril,
defronte, as sandálias brancas,
mais brancas e imóveis hoje.

Recordo as noites distantes
quando pisáveis no oitão,
leve, leve, parecia
que nem tocáveis no chão,
vinha a moça de cabelos
soltos e abria o portão.

Dos longos caminhos dantes
só ficaram sete palmos.
Serei o morto calçado
de olhos abertos, confiantes,
em novos itinerários
dos sapatos soluçantes.

Chuva de vento

De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?

Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal).

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?

Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?

Estendo-lhe a mão: a chuva fria.

Assombrações do Recife Velho

Cadeiras balançam
sem gente, sozinhas.

Fantasmas, rumores
na cama, estilhaços.

Apagam-se os lampiões
de bicos de gás
e as lamparinas
de azeite no quarto.

As rezas das tias,
velas no oratório.
A noite comprida
não acaba mais.

Cavalos, boleeiros,
de fraque e cartola
nas ruas vazias.

A moça encantada
no Encanta-Moça.
O Sobrado-Grande
com assombração.

A ronda do Diabo
na Cruz do Patrão
com fogo nos chifres,
correndo no istmo
de Olinda ao Recife.

Canoas sem remo
no Capibaribe.

Uivos dos cachorros
no fundo dos sítios
e dos lobisomens
pegando as mulheres
na Volta do Mundo.

*Do livro “Mauro Mora – 100 poemas escolhidos”, Cepe Editora, 2011.