Juliana Krapp nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1980. Poeta e jornalista, por duas décadas tem publicado poemas e textos esparsos em coletâneas e revistas literárias. É doutora em literatura brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e jornalista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Uma volta pela lagoa é seu primeiro livro de poesia.
Pretexto
o olho da rua é seco, sarcástico
do mesmo gênero das abotoaduras
e toucadores
de tudo resta sempre o seu mistério virgem
a beleza de íris os ares encardidos a córnea
tal qual um diadema espavorido
sobre nossas cabeças
então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia
e travou o zíper sobre a pele
Propriedade
como artifícios tem apenas as asperezas
a corpulência cabível em pavio desfigurados
ou os 28 dias necessários
para que se cure
o concreto
carrega
nas extremidades fissuras
irreparáveis
e, nos olhos,
a cor mirabolante dos abatedouros
mesmo assim
as corredeiras
as sirenes os personagens
estão ao seu dispor
e ainda esse aguaceiro
onde o entreaberto é uma doçura
de tão fundo
A estrutura íntima das horas
Acontece apenas no mar
de concreto protendido à beira
da estrada e apenas quando a estrada
tem algo de fogo
ensurdecedor:
um lagarto, osso
de candura, rompe
a respiração da tarde, penetra
em todas as substâncias – as rochosas
e as celestes, os líquidos escuros e
sua pantomima de espelhos
Enquanto tudo ao seu redor é ênfase
(profusão de tecidos
lancinantes),
o seu avesso
é puro vidro
ardoroso: quer partir
entreabrir-se em sulcos
lentos, desdobráveis
Você, ao volante, não percebe
mas isso tudo
é como nós dois
juntos
às cinco horas de uma tarde de verão
acovardados
quando há no ar algo de concha,
estiramento, zona cega: a experiência
do precipício
In natura
chegou a hora da prestação de contas:
às apalpadelas, de cor, ligeiro
gomo de amianto um tigre
dentro de um quadrado
à discreta contração de lábios não temos
sequer lastro de língua sequer
réplica e sua pouca carniça
– ao fundo só o desejo de orquidários
e uma perturbação de pernas
traiçoeira: uma única versão
que não fareje em seu reverso um último
recurso para a assepsia
mortal – rente aos pés a fabriqueta
formula estilhaços de atalhos presa
entrincheirada os olhos torpes e somente
o veludo cinza adentro do rasgo
do nome – esse
*Poemas do livro “Uma volta pela Lagoa”, Círculo de Poemas, 2023.