Ana Carolina Sauwen nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Poeta e atriz, é formada pela UNIRIO, com Mestrado em Artes Cênicas pela mesma universidade e especialização no Eccentric Performing Workshop, em Portland (EUA). É fundadora e atriz dos grupos “Bando de Palhaços” com 13 anos de atuação e diversos prêmios em sua trajetória. No audiovisual, foi finalista do Prêmio de Humor do Multishow. Recentemente, participou da novela “Vai na Fé”, da série Pedaço de Mim; série El Encargado e dos longas em pós-produção: “Cansei de ser nerd”, “Mãe Fora da Caixa” e “O Rei da Feira”. Fez ainda participações no Porta dos Fundos e em programas do Multishow.
NOTA DA AUTORA
Este livro foi escrito nas frestas
palavras repetidas na beira
a mesma frase
quando surgia encantada
mastigada incessantemente
grudada nos dentes
com fome com raiva
na intenção de não esquecer
não esquecer
enquanto não houvesse o tempo
mínimo
de estar só
quando enfim a chance de um papel
palavras cuspidas
derramadas na urgência
de quem tem tudo a perder
pois a fome da escrita
era dividida
com a fome da louça na pia
da cria
da janta
da máquina de lavar
e na cabeça
uma pergunta incessante:
para uma muher
é sempre assim que tem que ser?
Feitiço
Virei um bicho que odeia a noite
e, bruxa, decido:
hoje ela não vai chegar
mordo os pássaros para segurar seu canto
agarro o último raio de luz
espanto o escuro com meu grito
aumento a música
abro as janelas
e danço
meu filho ainda é sol.
Google agenda
Organizar a vida
de modo que haja chance
para um bolo.
organizar o coração
de modo que haja espaço
para o desejo.
organizar as ideias
de modo que haja brecha
para o sonho.
organizar as horas
de modo que haja tempo
para a vida.
Antes
Essa é a história de uma outra mãe
a mãe da mãe
é a história dos silêncios
é a história dos sonhos
é a história da história
da mãe da mãe
e da mãe da mãe da mãe
todas sempre repetindo
as palavras rudes
os convites, ordens
as ausências
as tristezas
como se estivesse escrito
que só entre pedras
entre murros
é que se aprende a viver.
Walt Whitman já trocou fraldas?
Difícil ser poeta
no intervalo preciso
entre limpar o cadeirão
e acolher para a soneca
segurando a ideia firme
repetidas 115 vezes
enquanto nina
e amamenta
torcendo para não esquecer
mesmo cantando
outra coisa
não esquecer
a frase tão bonita
fica aqui comigo
fica aqui com a gente
mesmo em momentos
de alívio
ufa, sumiu
a poesia pode sumir
de novo recomeçar
entre minutos
contados
depois de estender a roupa
aquecer o jantar
ligar para a mãe
tudo bem por aí?
enquanto os dedos
suplicam a caneta
E quando finalmente
é possível
havia algo que eu queria dizer
havia
havia.
*Poemas do livro “A mãe desse livro não sou eu”, Editora Funilaria, 2024.