Ana Cruz nasceu em Visconde do Rio Branco, Minas Gerais, a 20 de agosto de 1965. Poeta e jornalista, lançou seu primeiro livro de poesias “E… Feito de luz”, em 1995. Chegou a coordenar o jornal-mural De Mina, onde publicava os seus poemas e que dava oportunidades para outros escritores. Em 2011, criou o projeto literário “Mulheres Bantas, Vozes de Minhas Antepassadas” que consistiu em um seminário sobre Literatura Afro-brasileira. Este seminário resultou em um DVD de mesmo título, em que a autora trabalha com a memória valorizando a sabedoria e conhecimentos relacionados à ancestralidade.


Retrospectando

Passando a limpo, vejo minhas silhuetas curvas e recôncavos, onde onde espero existir
vestígios de diamantes depois de ressignificadas as ervas daninhas. Vejo as
marcas refeitas das insatisfações e as linhas tímidas da felicidade.
O reencontro de um ponto para um novo recomeço, pois não é preciso estar
feliz para recomeçar. Olho os amores que um dia foram eternos amadurecendo,
secando, perdendo a força.
Passando a limpo vou me perguntando que portas precisam ser trancadas para
que outras naturalmente se abram!

Lugar Seguro

Eu sou de um quilombo de Minas.
Nasci numa casa cercada de minas, minhas d’água.
Tinha também um pé de Jequitibá, que meu avô dizia corisco nenhum o
derrubaria. Lá, eu me encontro inteira!
Todas às vezes que eu necessito me entender naquilo que eu ainda não sei,
eu me encosto naquela árvore, fico olhando no fundo da mina meu rosto de menina,
meu resto de menina.
Meu começo de mulher.

Com Perdão da Palavra

Com perdão da palavra, eu vou abrir o verbo na primeira pessoa.
Eu quero te abraçar, beijar, te amassar da forma mais primitiva, com minhas
colheres de pernas. Batizá-lo de meu bendito fruto.
Eu quero dizer uma coisa só pro cê!
Pode dormir o sono dos justos.
Já é vosso, o ventre.

Memorando Mãe

Mãe atiçava o fogo, as brasas estavam lá dormindo relaxadas em estado
carvão, mas bastava um único sopor elas espichavam, estalavam e incandesciam.
Mãe, fogão, brasas e panelas se fundiam num diálogo silencioso.
Ela ganhava forma soberana.
Da cozinha ela extrapolava a cozinha, aceitava sem ressentimento que
não era aceita. Naturalmente sentia a grandeza de sua existência faiscar
corpo todo, limpando-o, desobrigando-a, da culpa de ser preta. Destituindo
assim o considerado intangível vulto oblíquo, o insultuoso à elegância
imaculada da casa grande.
Mãe tocava instrumentos, bordava, na observância fazia e ensinava coisas
tão complexas. Não a auto intimidaram a aprender! Numa postura dona negra
da situação, afirmava convicta: quanto mais retinta a África da pessoa,
mais de excelência são as ciências armazenadas nela. Hoje eu compreendo
mãe, com seus saberes empíricos, cobertos de razão.

Corpos não Colonizados

Violações e humilhações exorcizadas em cantigas e cantigas num poderoso instrumento
de sublevação. Assim, elas amareleciavam as raivas atiçadas e as re-sen-tiam,
não lhes permitindo secar a razão. Acompanhavam passo a passo seus sutis
trajetos pelos seus corpos, multiplicando, tecendo nós em pontos vitais. Sentindo
então sentidas, raivas enfraquecidas. Expulsas dos aconchegos dos tecidos elas
espocavam: das gargantas amargas, dos ventres comprimidos e das respirações
aceleradas que apagavam tudo, as impondo pra fora delas mesmas. Experimentavam
o pior do expatriamento, momentos lascinantes.
Raiva ressignificada, razão afiada!
Personificadas pelas suas dimensões culturais e intelectuais, confiantes na força
de suas inquices, minhas antepassadas caminharam sempre, numa perspectiva
crescente.

*Poemas do livro “Insurreiças Mulheres de Minas”, editora Niterói, 2019.