Ana Martins Marques nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, no dia 07 de novembro de 1977. Uma das mais conceituadas poetas brasileiras da atualidade, é Mestre em Literatura, pela UFMG, além redatora e revisora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Dona de uma poética experimental, utilizando formas distintas de linguagens para expressar sensações e perspectivas, sua obra é caracterizada por profundas reflexões sobre a vida. Venceu diversos prêmios, como o “Prêmio Cidade de Belo Horizonte”, nos anos de 2007 e 2008, e o Prêmio “Alphonsus de Guimaraens“, em 2011. Em 2022, foi finalista do Prêmio Oceanos.
Lembrete
Lembrar que
enquanto andamos
por estas ruas banais
sob um céu inestrelado
templos brancos como ossos
repousas entre oliveiras
quase igualmente antigas
uma mulher desfaz
sobre a nudez noturna
sua trança pesada
um pequeno lama
cabeceia de sono
e há leões e laranjas
falcões e hangares
anêmonas e zinco
um bando de antílopes
atravessa um pedação de terra
como este
deixando-o depois
vazio de sinais
em silêncio um homem prepara
menos comida do que ontem
uma a um
partem os barcos
de passeio
chove intensamente
sobre teleféricos
uma mulher vê
a cidade acender-se
à medida que anoitece
e para acalmar-se
conta as janelas
iluminadas
arrumam-se armários
roupas de pessoas mortas
envelhecem corpos jovens
envelhecem também
os automóveis
e as máquinas agrícolas
como uma rede veloz
recolhem-se do mar
peixes luminosos
que então serão deixados
afogando-se
na areia
alguém conhece
pela primeira vez
a enguia, o sexo, a escrita
pensar que devemos estar
à altura
disso
Alter do Chão
É tudo vidro, areia
pedra primeira da manhã
breu branco
formiga de cheiro
coração oco da floresta
só há o corpo
e se cansa logo
e se desgasta no atrito com as coisas
e está por fim sozinho
só há o corpo
e também a mata
as árvores muito altas
e muito velhas
que um dia o cipó matará num abraço
no igarapé um mergulho
apaga para você o mundo
e apaga você do mundo:
o silêncio dentro d’água
O que ela pensou na primeira vez que viu o mar
… que não era este o mar de verdade
o mar real
mas um simulacro de mar para uso de banhistas
um mar que não era mais do que um outdoor
um painel anunciando o mar
que era outro
não este: regular, sem monstros
quase domésticos
antimarinho
cheio de crianças e mijo de crianças
onde ninguém se lançaria
atrás de mundos desconhecidos
não um meio de imersão
como a música
mas mera calda morna e salgada
sopa de mariscos, embora vivos,
pano de fundo cinza
azulado para jogos repetitivos
em que não ganha ninguém
e que só à noite
se tanto
ferve de estrelas e ruge
como um mar real
*
Seu filho hoje aprendeu uma palavra
seus ossos dormem crescendo
em breve andará com firmeza
saberá a ciência do chão
em breve a língua tomará
conta dele
vai emudecer o mundo
moldar seus pequenos dentes
em breve a língua será a mãe
mais do que você é a mãe
Língua
1
No princípio
toda língua é estrangeira
acerca-se do seu corpo como de uma cidade
até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que ela lhe dá:
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
domá-la para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez,
ensina ao pensamento
cantando
estar na língua como numa
casa louca
que obriga ao abrigar
ela pensa o seu sexo
ela pensa o seu coração – fecha-os
abrindo-os
ela é música
e combate
ela fala na sua boca
com a boca dos mortos
ela é a eletricidade
dos cadáveres
daqueles cuja boca ela encheu
antes da terra
ela cria raízes no seu corpo
dela não é possível se livrar
você é o livro
dela
e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar
2
Ou é um dueto
uma dança
muito antiga
dela você também se acerca
toma as palavras emprestadas
e empresta-lhes também
sua energia
sua coragem ou doçura
e talvez seja mesmo possível
descartá-la
dissolver-se num mar que não o seu (Cf. Jorge de Sena, *Noções da linguística)
livrar-se dela
trocá-la por outra
mais nova ou versátil
meus únicos heróis
são os tradutores
ou pouco importa a língua
só o dizer as coisas
que ao serem ditas
extinguem-se
mas com que fulgor
escrever poemas:
não se contentar com as línguas que se sabe
nem mesmo com as línguas que há
as línguas são meios
de viagem, são meios
de transporte as palavras:
carregam consigo o camelo
o arranha-céu a baleia
não só a baleia
todas as baleias
não só o amor
todo o amor
*
Uma primeira pessoa cheia de pequenos animais
e coisas esquecidas nos cantos
e folhas e filó
dirige-se a uma segunda pessoa
com um buraco no meio
onde se pode guardar o pão
ou esconder uma chave
enquanto uma terceira pessoa
da estatura ideal para se pendurar um anúncio
observa de longe
assoviando uma pequena canção
E no entanto entre elas
a primeira, que fala
a segunda, que escuta
a terceira, que assiste
o enigma do mundo
mudo
E o silêncio
que constroem
com palavras
muito antigas
História
Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos,
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem uma história de 2 dias,
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 4 anos
e uma camiseta de não mais que 3,
troco com meu vizinho
palavras de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo uma imagem
que viveu
alguns segundos.
*
É como se a infância não fosse um tempo
mas um lugar
com seus cumes seus esconderijos
suas pequenas clareiras
um lugar, aquele onde cometemos
nosso primeiro crime
há quem tenha matado um coelho
há quem tenha matado um sapo
há quem tenha matado um cão
há quem tenha mentido perseguido destroçado
deixado morrer
por capricho
de minha parte matei uma criança:
uma menina morreu em mim
por onde vou carrego
seu cadáver
e a forma exata do seu corpo
repousa no meu corpo
como num vestido
largo demais.
*Poemas do livro “Risque esta palavra”, Companhia das Letras, 2021.