Maria Esther Maciel nasceu em Patos de Minas, Minas Gerais, a 1° de fevereiro de 1963. Poeta, ensaísta, escritora e professora titular de literatura comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atualmente atua como colaboradora de teoria literária na UNICAMP. É membro da Academia Mineira de Letras e coordena a Revista Olympio – literatura e arte. Estreou na ficção com O livro de “Zenóbia”, finalista do prêmio Portugal Telecom de 2005. Seu segundo romance, “O livro dos nomes”, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Portugal Telecom e do Prêmio Jabuti, em 2009. Recebeu menção especial no Prêmio Casa de las Américas 2009. Foi uma dos representantes do Brasil na Feira do Livro de Frankfurt em 2013. Participou da mesa “O Falcão e a Fênix” na Feira Literária de Paraty em 2016. Tem artigos, textos literários e resenhas publicados em vários periódicos do Brasil e do exterior.
O que quero com você
Entrar em estado de graça num dia de chuva
sob um toldo vermelho meio sujo
Andar nas encostas do rio Paranaíba
e ver que, de repente, a água ficou turva
Beber chá de romã numa noite úmida
e pouco iluminada de outubro
Descascar pêssegos num prato trincado
e dizer em segredo uma palavra lúbrica
A hora e a vez
Chega um dia em que nada
é mais
o que sempre foi.
O sinal
pode ser a queda súbita
de uma palmeira
no teu jardim durante
a chuva
ou um inseto dúbio
que irrompe na prateleira
da estante
(e não consegues saber
de onde ele veio
ou a que veio
naquele instante)
E o que é mais inquietante:
esse dia limpa todos os outros
que vieram antes
Entorno
Aquele homem ruivo na mesa ao lado
carrega uma expressão indefinida:
estaria atormentado ou apenas triste?
Sua testa franzida, seu olhar entreaberto
diante do copo vazio e da comida fria
sugere algo de que nem ele desconfia.
Minha amiga diz: que homem esquisito.
Mas não sei se é mesmo isso. Talvez seja
apenas um sujeito que perdeu o rumo,
um grande amor ou alguém muito querido.
Seja o que for, não há o que fazer por ele
a não ser deixá-lo em silêncio e alheio
ao que passa ao redor e alhures.
Quinta-feira
Na despedida
o abraço
com todos os ossos
e nervos
músculos, artérias
e veias
pele com pele
dos pés à cabeça
numa teia
. de afetos
e segredos
É quando o amor
feito só de palavras
se expressa
. em silêncio
e de corpo inteiro
Ao som de Coltrane
No sofá da sala
dois gatos me olham
arredios:
o de pelo escuro
com ar obtuso
mia, ferino
o de manchas castanhas
arranha o tecido
com ríspida brandura
De repente
um deles
coloca a pata
sobre meu joelho
esquerdo
como se quisesse
me contar
com os olhos
um terrível segredo
Blackheath
A poesia me chama entre as árvores
de folhas incompletas.
O vento é frio, apesar de terno.
Corvos mancham o azul sem peso
desta tarde que não começa.
O trem também me chama.
E não vou.
Elegia
Há um vestígio mineral
na sua ausência: algo
que sem estar ainda
fica: fatia de cristal
que não se vê e brilha:
solidez em transparência
elegância de pedra, luz
do que é perda e não.
Há um vestígio musical
na sua ausência: algo
que é sigilo e ressonância:
sintonia de cristais
sílabas de sim no
silêncio do som e do aqui.
*Poemas do livro “Longe, aqui. – Poesia incompleta 1998-2019”, Editora Quixote + do, 2019.