Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, Ceará, no dia 12 de fevereiro de 1991. Poeta, cordelista e escritora, é uma das principais vozes da poesia feminina negra da atualidade. Autora dos livros As Lendas de Dandara, Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, Um buraco com meu nome, Redemoinho em dia quente e Corpo Desfeito, criou, em São Paulo, o Clube da Escrita Para Mulheres. Em 2019, com o livro “Redemoinho em dia quente” venceu o prêmio da Biblioteca Nacional de Contos, o Prêmio APCA de Literatura, na categoria Crônicas, além de ter sido escolhida um dos melhores livros do ano, pelo Suplemento Pernambuco e pela revista quatro cinco um.

pele clandestina

pele
clandestina

recém-
descida

do barco

é filha
essa menina
não identifico
os traços

seguro a mão
de minha mãe

tentando ser
mais ela
que preta

pele
clandestina

recém-
nascida

negra

mangue-vermelho

a vala comum
para o corpo
marrom
é adubada pelas
histórias
é ninada pelas
vozes
é nutrida
pelas avós
por aquelas que
dormiram
o sono da injustiça

as avós do corpo
comum
jogado deitado
emprestando
o marrom ao solo
as avós
ninam memórias
e cantam

filho
netinho
ouça o riso
do passado
distante

existiram contos
sem barcos
sem marés
nervosas
de sangue

filho
nos ouça o riso
existiram cantos
e contos

deita teu rosto
na vala
imaginando ser
nossos ombros

duas cadeiras

conte para mim
sobre como tudo anda difícil
e nem a cerveja se paga
e nem a escrita se cria
me conte

sobre os imprevistos
e as curvas fechadas
sobre os livros
abandonados
as exposições vazias
de significados

me fale sobre a rotina
que esmaga
com as palavras que
sempre as mesmas
se usa

e sobre a cidade cinza
os rios espumantes
o quilo de sal
caro
que se come
me conte

sobre as temperaturas
altas e os corações
apáticos
sobre as relações
de supermercado
os produtos
políticos

eu quero ouvir
sobre as pequenas vidas
os pequenos instantes
de vida
que ainda resistem

precipitação

essa paz que só a chuva
derruba
lava os esgotos
da forma humana

as árvores caem
os fios explodem em fogo
mas a chuva não é culpada
de nossas tolas
estruturas

construímos nossas casas
sobre cemitérios
de tramas
escolhemos móveis
que espantam o eco
das vozes mortas

a chuva canta
sobre o asfalto
e eu danço

triste de quem está na rua
e foge
de quem está na avenida
e experimenta a solidão
dos carros

eu sinto paz
com a dança da chuva
também moro sobre
túmulos
e mesmo agora
escrevo lápides

mas a morte é apenas
morte

por que procurar
palavras difíceis
para coisas inomináveis

guarde suas
frases
para quando houver
sol

pílula

penso no cérebro
como uma cafeteira
de cápsulas
onde encaixamos
as receitas
e o líquido vem
pronto
antes eu me importava
com o processo
hoje só quero beber
rápido

*Poemas do livro “Um Buraco Com Meu Nome”, Editora Ferina, 2018.