Julie Dorrico, mais conhecida pela pseudônimo Trudruá Dorrico, nasceu em Guajará-Mirim, Rondônia, em 1990. Poeta e escritora de etnia Macuxi, é Doutora em Teoria da Literatura, pela PUC-RS, e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia. Ativista pelas causas indígenas, tem atuado para difundir as culturas dos povos originários do Brasil, em especial escritores e escritoras das diversas etnias que habitam o país. Atualmente também administra o canal no YouTube “Literatura Indígena Contemporânea”.
Canção de ninar colonial
Quando ela diz que está descobrindo meu corpo
com sua voz doce no café da manhã,
eu dou um gole na bebida e fito seus olhos
doces e fatais,
a textura da sua pele é uma nação –
que conheço bem.
Eu sou um mapa que ela nunca viu,
porque ela performa a colonização.
Ela fala de “índios”, eu digo que não é assim que se fala,
ela agradece e responde que está aprendendo
e eu repito que não sou sua escola. Ela diz que me ama e
que não é isso.
Ela excuta a dominação.
Quando encontramos pessoas e vamos nos apresentar,
ela se adiante – até com certo orgulho –
e diz que sou indígena.
E eles selam o pacto, o contrato,
de nunca me deixar esquecer a identidade
e a história que produziram para mim.
Eu a beijo, sim, ela é a continuidade
desse paradoxo que toco,
que gozo, que sinto.
Ela me reverencia, mas eu continuo sendo
o que sempre fomos neste país.
Cumplicidade
Tocando tua pele
Sinto a energia da qual nos originamos
Olhando teus olhos e lendo
As conjugações de nossos tempos,
De nossos verbos,
De nossos pronomes,
Nossos primeiros nomes.
Ouvindo a tua voz e sentindo
O pacto que fizemos em outros tempos
de obedecer ao antigo chamado
de gerar ancestralidades.
Eu olho teus olhos
e é o nosso livro
Que escolho continuar lendo.
Retomada é um paradigma
É um modo de vida.
Trata-se de pertencimento.
Subjetividade.
Autoestima.
Trata-se de reaver nossa história,
nossos cabelos, nossas pinturas.
De olhar nosso corpo e sentir a beleza
que vem da terra, da qual tanto nos orgulhamos.
Trata-se sempre de nós.
De como reconstruímos relações fraternas e afetivas.
De como somos mais fortes em rede.
Retomada é um paradigma de poesia.
Genocídio
Quando morre uma mulher indígena,
Morre um pouco do povo,
Morre um pouco de todos nós [indígenas]
E muito sonhos
E o direito de determinarmos nosso próprio destino.
Morre um pouco da [mãe] terra,
Pois é menos uma natureza a estimá-la.
Quando morre uma mulher indígena…
Não.
Quando é assassinada uma mulher indígena,
Nossas indignações pulsam no peito mais forte,
Ante o curso incomum da desumanidade
Não deveria ser naturalizado, nem possível,
pois morrem [os] mulheres indígenas.
Pemonkon
Meus avós navegaram
a primeira canoa
das águas dos deuses
Eu remo
em direção ao sonho
à palavra antiga.
Eu sempre volto
um passo atrás
– é princípio ancestral
E afundo e emerjo
nessas água encantadas
– elas são meu corpo.
*Poemas do livro “Tempo de Retomada”, Editora Autêntica, 2024.