Luiz Silva, mais conhecido pelo pseudônimo “Cuti”, nasceu em Ourinhos, São Paulo, em 1951. Poeta, escritor e dramaturgo brasileiro, obteve os títulos de mestre em Teoria da Literatura e doutor em Literatura Brasileira pela Unicamp. Em 1978, foi um dos criadores do jornal literário “Jornegro” e da série de antologias Cadernos Negros. Participou da fundação do grupo Quilombhoje, no qual se manteve até 1993.


colorismo

dois negros
duas medidas
se claro
tem saída
escuro
porta proibida

dois negros
uma ferida
imensa e comovida
passado sangrando ainda
mortes desde a partida

dois negros
duas medidas
escuro
dois pés na senzala
claro
um na senzala
outro divisa cozinha e sala

dois negros
uma ferida
ser e não ser uma ilha
em um mar de crueldade
sem trilha
alvo de quem persegue e humilha

dois negros
duas medidas
claro vantagem leva
escuro
restritivas

dois negros
uma ferida
à espera da solidariedade
cura
a ser vivida.

amálgama

feito átomos
emoções se agitam
com a imaginação combinam
moléculas de desejo
que se organizam
em células sentimentais
atadas por raciocínios
com que se fazem pensamentos
frágeis
monumentais

no mais é fingimento
ninguém pensa
sem sentimento

atrás do cálculo
do argumento
tem gente
que ao dizer não sentir
mente.

pesos e mordidas

todo mundo
uma hora esbarra
com seu próprio código de barras
percebe seu preço
muito abaixo
do combinado
quando alugou
sua força de trabalho
por necessidade
doença
locou sua mente para essa
ou aquela crença

todo mundo
uma hora esbarra
com seu próprio código de barras
e pensa
se compensou ou compensa
sua autossentença

ou até onde se sustentam
escárnio e indiferença

todo mundo
uma hora esbarra
com seu próprio código de barras…


mordida do remorso

sob o capuz
algum carrasco chora
quando a vítima implora
pela vida?

agredido pelo pedido
carrasco tem asco
e mais forte o golpe revida

quem errado votou
sabe, mas finge que não nota
tanta gente morta
e quanto ainda sangra
a coletiva ferida

temendo o revide
agora silencia
pois sabia
o carrasco que se vangloria
jamais negou ser um genocida.

brecha no muro

o beco tem saída
também há cura para a ferida
e que o efeito do trauma não prossiga

o beco tem saída
não comer porcaria
enfrentar os vícios do dia a dia
boicotar os suplícios da mais-valia

o beco tem saída
solidariedade
ativa
ao invés da morte
celebrar a vida

o beco tem saída
expurgar malignos capitalistas
e todos os seus genocidas
num voo só de ida
para bem longe do planeta
que nem o james webb enxergue
ou dê pista

o beco tem saída
no lixo tudo o que não presta
racismachismhomofobia
e todo tipo de exploradora hierarquia

o beco tem saída
com energia limpa
agrofloresta
democracia participativa
da política à economia

o beco tem saída
lucidez sábia, coragem
paciência e empatia

o beco tem, sim, saída!

disparidade um dia se despe

amor entre
quem manda
e quem obedece
é posse

passa pelo assédio
ameaça
uso da força
depois maquiagem
para hematomas e tédios

quando a vítima adoece
submissão como remédio

entre quem manda
e quem obedece
desejo com ódio
se tece

entrega forçada
faz brotar
silente
ânsia de vingança
que mesmo oscilante
cresce
por intermédio da esperança
alcança a vontade
se lança
e a liberdade acontece.

*Poemas do livro “ritmo humanegrítico”, Companhia das Letras, 2024.