Daniel Arelli nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1986. Poeta, Doutor em filosofia pela Universidade de Munique e professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura de 2018 com o livro “Lição da Matéria”. Atualmente é um dos editores da Ouriço: revista de poesia e crítica cultural.

OCIDENTE

Arqueólogos descobriram na Grécia
uma placa de argila com a inscrição
do que parecem ser treze versos
do Canto XIV da Odisseia.
É o registro mais antigo da epopeia.
Ainda não decifraram inteiramente a inscrição
mas estão todos aflitos
sabem que uma pequena variação
no sentido dos versos
como um dativo no lugar de um genitivo
um verbo em aoristo
terá consequência incalculáveis
para a civilização:
de repente o Ocidente será outro
de repente o Ocidente terá sido sempre outro.

ACÁCIAS

Numa viagem de ônibus
longuíssima
através do dia
e da noite
li pela primeira vez o poema de Parra
sobre as acácias.

Deve ter sido aí que me dei conta
de que sempre projetamos
o que se passa dentro
sobre o que está fora
incuravelmente
como uma espécie de alergia crônica
os erros da geração passada
um mito.

Desde então
sempre que viajo de ônibus
me lembro de Parra
e de seu poema
apoio o rosto no vidro da janela
e tento acompanhar
a paisagem
nua.

TEORIA DO RASCUNHO

1. A poesia é basicamente uma moenda

o que passar
se passar
torna-se poema

2. A poesia sobreviverá

nas mensagens instantâneas
nos erros do corretor automático
no autocompletar das buscas
até mesmo nas caixas de comentários

desde que nunca a chamemos pelo nome
desde que nunca e escrevamos

3. A antipoesia, se triunfasse, triunfaria

mas isso seria demasiadamente épico
a antipoesia sequer conhece vitórias
a antipoesia neutraliza seus adversários
lançando-os numa câmara de gelo

4. Não tente encaixar o poema

na forma
deixe que ela escreva o poema
observe-a de longe como a uma respeitável desconhecida
ocupada com algum afazer exótico
e ancestral

5. Nesta alquímica manhã de verão

em que o ruído de uma britadeira
parece compor o cenário ideal
para um poema ou uma revolução
pego régua, esquadro e compasso
um folha de papel almaço
e olho atentamente para os lados
tenho um plano – o que pode dar errado?

6. Um bom poema

se reconhece pelo corte do verso
às vezes sequer é preciso ler o poema
pelo corte do verso sabemos se é bom
como ele corta ora uma sentença ora uma palavra
como ele ao mesmo tempo corta
e é aquele corte
o poeta está portanto mais próximo
do alfaiate
e do açougueiro
do que do filósofo

COMO É BOM TER UM CORPO

foi que pensei
aos estalar os dedos dos pés
com os dedos das mãos
finalmente aprender a boiar
trepar em uma ameixeira
não fazer nada apenas o que faz um bicho
etc.
como é bom ter um corpo
pensei

mas não: não tenho um corpo
este corpo é que me tem a mim
este corpo sou eu

*Poemas do livro “Lição da Matéria”, Edições Macondo, 2020.