Ghayath Almadhoun nasceu em Damasco, Síria, em 1979. Radicado na Suécia desde 2008, suas obras foram traduzidas para quase 30 idiomas. Almadhoun publicou cinco coletâneas de poesia em árabe, tendo recebido o Prêmio Klas de Vylders para escritores imigrantes, na Suécia. Sua obra “Till Damaskus”, de 2014, feita em parceria com a poeta sueca Marie Silkeberg, foi incluída na lista de melhores novos livros do jornal “Dagens Nyheter”, e virou uma peça de rádio no país.  Almadhoun também criou vários filmes de poesia com Silkeberg, sendo que seu filme mais recente, “Évian”, ganhou o Prêmio Zebra de melhor filme de poesia de 2020.

*
Naquela época,
quando eu te amava com ternura,
as grandes migrações atravessam a
Europa Central violentamente,
Paul Celan emerge do rio Sena,
com a mão molhada ele toca no meu ombro
e com sua voz trêmula sussurra no meu ouvido:
Não bebam o leite preto…
não bebam… o leite… preto
não bebam…
não…

E desaparece entre a multidão de sírios
que caminham para o Norte.

*
A física
Deus amaldiçoe a física.
Por que os imigrantes se afogam e, depois de darem o último
suspiro, flutuam na superfície da água?
Por que não acontece o contrário?
Por que uma pessoa não flutua quando
está viva e afunda quando morre?
Bem.
Chamemos as coisas pelos seus nomes.
Os livros são cemitérios para os poemas.
As casas são tendas de cimento.
Os cães são lobos que aceitaram a humilhação.
O tapete de oração me lembra o tapete voador.
Meu quarto caiu de amores pelos teus sapatos verdes.
Eu me afogo em você, como os sírios se afogam nos mares.
Oh, meu Deus.
Veja onde a guerra nos levou.
Mesmo nos meus piores pesadelos, não me ocorreu.
Que um dia.
Eu diria em um poema:
Eu me afogo em você, como os sírios se afogam nos mares.

*
Cada bomba que cai sobre Damasco rasga
uma página de um livro de Descartes.

Quando nascemos.
A vida era colorida.
As fotos eram em preto e branco.
Hoje as fotos são coloridas.
E a vida é em preto e branco.

MULHERES

Mulheres que pisaram as uvas desde o início da história.

Mulheres que foram presas com cintos de castidade
na Europa.

Bruxas que foram queimadas na Idade Média.

Escritoras do século XIX que assinaram com
nomes masculinos para poderem publicar.

Coletoras de chá no Ceilão.

Mulheres de Berlim que reconstruíram a cidade
depois da guerra.

Cultivadores de algodão no Egito.

Argelinas que espalharam fezes em seus corpos
para não serem estupradas pelos soldados franceses.

Virgens dos charutos em Cuba.

Guerrilheiras de Black Diamond na Libéria.

Dançarinas de samba no Brasil.

Aquelas que perderam o rosto com ácido no Afeganistão.

Minha mãe.

Eu sinto muito.

*
Aquele pequeno buraco.
Que resta depois que a bala passa.
Esvaziou meu conteúdo.
Tudo estava fluindo tranquilamente.
As memórias.
Os nomes dos amigos.
A vitamina C.
As canções de casamento.
O dicionário árabe.
A temperatura 37.
O ácido úrico.
Os poemas de Abu Nuwas.
E o meu sangue.

*
Jogue fora a Renascença e traga a Inquisição.
Jogue fora a civilização europeia e traga a Noite dos cristais.
Jogue fora o socialismo e traga Joseph Stalin.
Jogue fora os poemas de Rimbaud e traga o tráfico de escravos.
Jogue fora Michel Foucault e traga o vírus da AIDS.
Jogue fora a filosofia de Heidegger e traga a pureza da raça ariana.
Jogue fora o Sol de Hemingway que ainda brilha
e traga uma bala na cabeça.
Jogue fora a Noite estrelada de Van Gogh
e traga sua orelha decepada.
Jogue fora o Guarnica de Picasso
e traga a verdadeira Guranica com seu cheiro de sangue fresco.
Precisamos dessas coisas agora,
precisamos delas para começarmos a celebração.

*Poemas do livro “Você deu em pagamento o meu país”, Ars et Vita, 2025.
Tradução de Alexandre Chareti