Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro, a 29 de novembro de 1979.  Poeta, artista, tradutora e editora, venceu o Prêmio Oceanos de 2018, com o livro “Câmera Lenta”. Seus livros foram traduzidos e publicados em outros países, como Argentina, Chile, Colômbia, Portugal, Espanha e Estados Unidos. É co-editora, com os poetas Angélica Freitas, Fabiano Calixto e Ricardo Domeneck, da revista de poesia Modo de Usar & Co[6] e, em 2015, fundou a LunaPARQUE Edições com o poeta Leonardo Gandolfi. Formou-se em Letras e, em 2010, doutorou-se em Literatura Comparada.

Publicou os livros 20 poemas para o seu walkman (São Paulo: Cosac Naify, 2007/ Bahía Blanca, Argentina: Vox Editorial, 2013),[2][3] Engano geográfico[4] (Rio de Janeiro: 7letras, 2012 / Error geográfico: Barcelona, 2015), Um teste de resistores (Rio de Janeiro: 7letras, 2014 / Lisboa: Mariposa Azual, 2015), Paris não tem centro (Megamíni, 2015), Câmera lenta (São Paulo: Companhia das letras, 2017) e Expedição: Nebulosa (São Paulo, Companhia das Letras, 2023).

frère jacques

quando criança
os pais disseram
que precisava ir às sessões

eles estavam afundando
a casa aos pedaços      a mãe chorando
pelos cantos       o pai mudo ou bravo
e os gritos atrás da porta

em todos os encontros
a senhora perguntava:
– quer conversar ou desenhar?

sempre queria desenhar
mas às vezes achava que era preciso
dizer conversar só para agradar

nos dias de conversa
ficava muda e a senhora
acabava dormindo sentada

na janela um macaco de madeira pendurado
testemunhava a aflição da criança
e o cochilo da senhora
quando conseguiu
dizer que não queria mais ir lá
fez um jacaré de argila pintado de verde
que tinha uma enorme boca
aberta
a doutora concluiu que a menina
tinha enfim conseguido
abrir a boca           como o jacaré
tinha conseguido falar

na saída ia com a mãe comer
croissants numa lojinha de rua
chamada frère jacques

a cura estava nos croissants de queijo
que comia depois da sessão

a mãe gostava de contar
a anedota da maria antonieta
“se eles não têm pão
que comam brioches”

talvez tivesse uma ponta de ironia
na fala da mãe
mas não lembra de comer brioches
só croissants

assim se diz está chovendo

enquanto aponto
o lápis
.           fecho os olhos
e abro a janela do poema – para que entrem
todos os insetos

mas está chovendo
as gostas respingam     e molham o chão
uma imensa tempestade cobre a paisagem
eu abro os olhos      pego um livro
na estante e
vejo

é um dia de verão
sylvia plath está sentada
diante da janela vendo a chuva que cai
é dia 1º de julho
está quente úmido fumegante
e chove torrencialmente

ela pega uma caneta sem tirar os olhos
do molhado        está tentada a escrever um
poema
ela apoia a caneta no papel
e anota: nunca esquecer
da carta de recusa que um dia recebi
contendo três linhas

.               “após o aguaceiro
poemas intitulados         chuva
inundam o país inteiro”

história natural

sempre disseram
que eu tinha os olhos
do meu pai

cabelo estatura
queixo caligrafia
– cada coisa de uma tia

os gestos     da minha mãe
hoje olho minha filha
e só consigo ver
ela própria:
.                      rosa é uma rosa. é uma rosa
é uma rosa

penso num poema do cacaso
e na américa latina do futuro
que um dia ele quis imaginar

olho para a minha filha
e juntas olhamos para
esta américa latina
do futuro

estamos num túnel de fumaça
e não consigo ver o que aconteceu

*Poemas do livro “Expedição: Nebulosa”, Companhia das Letras, 2023.

em loop, a fala do soldado

vivo numa caixa preta
de vinte centímetros.
vejo o mundo por um visor,
no meio uma cruz
para mirar as coisas
prédios      estradas       objetos      cachorros.

tudo o que passa pelo quadro
vira alvo, então penso em algo
linear: você já reparou que algumas imagens
se repetem? de repente,
um cisco no olho.
“eu vivo numa caixa preta”,
disse: estamos sentados
lado a lado no trem
– em silêncio – os dois de calça verde
e camisa branca.
.                         sei que não está tudo bem,
levanto o olhar tentando alcançar
o dele e ouço apenas a voz
de frente para o alvo.
vivo numa caixa preta, diz,
e eu não sei como parar
a repetição.

terremoto

um terremoto replicando
por vários dias,
à noite as luzes de néon paradas
e, na manhã seguinte,
a tremedeira seguinte,
a tremedeira outra vez.
você pensa que o futuro
ainda não chegou, mas
de repente o terremoto
replicando faz tremer a língua
os dentes e tudo o que é
matéria.

por mais que use as palmas
para cobrir os ouvidos,
a ternura – o que você quer dizer? –
aliás, a tremura chega
arrastando tudo.
era como um país virando mar
um terremoto replicando
sem parar. se as réplicas consistem
em tremedeiras, e se uma língua é desenhada
fora das linhas,
como conciliar o
inconciliável?, pergunto
no momento de maior
desligamento e
ele responde:
– agora o seu wasabi
tem radioatividade.
essa cor brilhante,
de um verde quase prata,
era como a luz batendo no mar
bem na hora em que o chão –
e tudo recomeça.

quero pedir
silêncio, mas não sei lidar
com o imponderável.
um dia acordo
e não espero
mais resposta.

*Poemas do livro “Câmera Lenta”, Companhia das Letras, 2017.