Ana Carolina de Souza nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, a 9 de setembro de 1974. Poeta, cantora, compositora e produtora musical, é uma das artistas mais importantes da MPB atual, sendo uma das cantoras mais vendidas na década de 2000, cerca de 5 milhões de discos. Conquistou 8 vezes o Prêmio Multishow de Música Brasileira, 3 vezes o Troféu Imprensa e 1 vez o Prêmio TIM de Música. Como poeta sua trajetória literária iniciou com a publicação do livro “Ruído Branco”, de 2016. Desta obra, a artista lançou um EP em que declama quatro poemas.
Eu e eu
Ele me segue com o pensamento
como se de lá de dentro avistasse minha aflição
Procuro uma fraqueza qualquer em mim
Escuta meu silêncio entrecortado
como se eu falasse atrás de uma porta fechada
Adivinha minha dor
que às vezes pareço merecer
como se nela houvesse um olho mágico
com o qual ele me enxerga bem melhor do que eu mesma
Ele é um radar
Ele está num estágio de mim mais avançado que eu
Ele é outro aqui dentro
que às vezes fico me relando até o pau endurecer
embaixo das cobertas
O homem que há em mim
se apaixonou perdidamente pela mulher que sou
Alguma explicação
Passos no escuro
O escuro tem outro escuro dentro
Ansiedade apagada
Uma cadeira me encontra
Já estou sentada. Pensando
Entre o vivido e o não vivido
A solidão me olha
quer alguma explicação
Lá fora nenhum clarão
Tocando as mãos da madrugada
estrelas contadas
A dor me acorda com seus rangidos
e me leva onde nunca fui
Me abraço com os braços das horas
O tempo quer alguma explicação
Atravessando a fumaça lá fora
meus sonhos levantam
entram pela porta
e mesmo ao meu lado
não me fazem companhia
Então eu volto de tudo olhado
De novo me reinvento
Me despeço do passado
Sou um arrependimento
Passos no escuro
O escuro tem outro escuro dentro
Outro
Neste quarto cheio de espelhos
há outro quarto
que arma com incerteza
um sigiloso teatro de mim
comigo mesma
Sonho
Sonho com um peixe humano me dizendo oi
e fujo por entre as catracas do metrô
Faço um aceno à minha avó
Ainda viva, sorri pra mim
Chego em Juiz de Fora
Subo a Braz Bernardino até a Rio Branco
Abro a porta de um prédio, meu psicanalista é o porteiro
Me pergunta onde eu vou
Digo que vou até a minha infância
Ele avisa a minha infância que estou subindo
Abro a porta do elevado, o ascensorista é meu pai
Nada me pergunta
Ele aperta um andar e eu vou com ele, quieta
Chegamos no andar, ele abre a porta e em seguida
desaparece
Vejo uma sala vazia com 2 homens conversando na janela
Quando me aproximo deles, serão meus filhos e me
abraçam
Discretamente
Olhando a minha sombra na parede
vejo discretamente
saírem 2 velhas
do meu pensamento
Andam silenciosamente
segurando um lampião
Uma vai mais à frente
A outra não se preocupa
Elas inventam ausências em minha volta
Eu invento asas no lugar dos seus braços
Elas voam pra muito longe
Enquanto me abaixo pra pegar a vela
minha sombra aumenta na parede
Uma tempestade se aproxima
Elas voltam
Fecho as janelas
Elas se assustam com suas sombras
na parede de lembranças
E pensam em si mesmas como se fossem estranhas
Acidente 2001
20 pontos na cabeça
Lado direito do rosto roxo
Lado direito da cabeça raspado
Platô tibial da perna esquerda quebrada
3 meses de cadeira de rodas
1 curativo na boca
1 caco de vidro restou no meu antebraço
Quando retiraram o caco,
o último vidro que restava em meu corpo,
vi que uma parte de mim
ficou deitada naquela avenida eternamente
*Poemas do livro “Ruído Branco”, Editora Planeta, 2016.