Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro (RJ), a 10 de junho de 1952. Poeta, ensaísta e crítico literário, é membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 3 de junho de 2004, sucedendo Marcos Almir Madeira. Doutor em Letras, é professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 1993. Ganhador de diversos prêmios literários, organizador de antologias como as de João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles (edição do centenário), Mário Pederneiras, dentre outros, venceu diversos prêmios importantes, como o do Instituto Nacional do Livro (MEC) e o Sílvio Romero (ABL).
“DESMORONARAM PROMESSAS E MISÉRIAS”
Desmoronaram promessas e misérias,
pedaços da palavra e da memória,
e o sol da força bruta da matéria
escorre pelo ralo como escória.
Os ratos banqueteiam toda a história,
e avançam contra os cacos do presente,
seus dentes decompondo em pó e glória
de um futuro podado na semente.
Do muito que sonhamos talvez sobre
o sopro de uma aurora que nos leva
além da nossa dor, mas não descobre
a flor que pulsa e arde em torno à treva.
O que era claro agora é espaço em preto,
negra luz sobre as cinzas de um soneto.
“MULHER NASCIDA DE MEU SOPRO”
Mulher nascida de meu sopro,
na mistura da paixão e da borracha,
sei que nesse nosso toque matutino
o meu gesto vai abrindo à natureza
novo campo, que renega a força humana.
Os insetos nos proíbem da varanda
e teu nome não é coisa para os muros.
Imprimo nos lençóis o formato de teu grito
duplicado por mim mesmo sobre os poros
que resistem no teu corpo esvaziado.
Mas eu amo a senhora.
Se o meu sopro não te acende em vida certa,
se o teu riso não ressoa nas vidraças,
encaixo no teu braço minha jaula e teu naufrágio,
escavo em teu pescoço nosso abraço clandestino.
BIOGRAFIA
O poema vai nascendo
num passo que desafia:
numa hora eu já o levo,
outra vez ele me guia.
O poema vai nascendo,
mas seu corpo é prematuro,
letra lenta que incendeia
com a carícia de um murro.
O poema vai nascendo
sem mão ou mãe que o sustente,
e perverso me contradiz
insuportavelmente.
Jorro que engole e segura
o pedaço duro do grito,
o poema vai nascendo
pombo de pluma e granito.
POEMA-SAÍDA
Agora o livro se encerra
passando talvez da hora.
No entanto, informo ao leitor
que acaso não foi embora:
“Na antessala” era entrada;
sirvo agora a sobremesa,
que você, já enfastiado,
mal percebe em minha mesa.
Se não gostou, nem reclame,
foi previamente alertado.
Num poema insinuei:
me leia desconfiado.
Sei apenas que escrever
nunca me apontou saída.
Mas ainda assim é nisso
que apostei a minha vida.
SONETO VELOZ
O poema sai correndo à minha frente,
desse jeito jamais vou segurá-lo.
Fingia estar aqui, mas de repente
se intrometeu no trote de um cavalo.
Na estrofe dois passou em disparada.
No espaço esvaziado eu arremeto
inútil rede, a recolher o nada:
o poema escapuliu deste quarteto.
Consigo enfim laçá-lo, ele se faz
inteiro e hostil, à minha revelia.
E se revela, súbito, capaz
de me livrar do laço que o prendia.
Livres nós dois, agora ele já fala
na voz que nasce quando o autor se cala.
LINHA DE FUNDO
Assim meio jogado pra escanteio,
voltou o poema, este local do crime.
Mas é o desprezo que melhor exprime
aquilo que no verso eu trapaceio.
Se pouco do que digo me redime,
cópia pirata de um desejo alheio,
revelo a ti, leitor, o que eu anseio:
um abutre no cadáver do sublime.
A matéria é talvez muito indigesta,
me obriga a convocar um mutirão
para acabar com toda aquela festa
de pétalas e plumas de plantão.
Memória derrubada pelo vento,
quero aqui só lembrar o esquecimento.
CINZAS
Talvez o verão tenha queimado os frutos.
As mãos, ressequidas, apenas recolhem restos.
Cinzas, ardores, ossos.
Havia ali,
não se lembra?,
um rumor de desejo,
que nenhuma palavra salva:
todo poema é póstumo.
Botei a boca no mundo,
não gostei do sabor. Ostras e versos
se retraem
ao toque ácido das coisas tardias.
Na sombra insone do meu quarto,
o vazio vigia, na espreita do que não há:
por aqui passaram
pássaros que não pousaram. Fui traído
por ciganas, arlequins e cataclismos.
De nada me valeram
guardar relâmpagos no bolso,
agarrar nas águas as garrafas náufragas.
*Poemas do livro “Desdizer”, TopBooks, 2017.