Tal Nitzán nasceu em Jaffa, Israel, a 9 de novembro de 1961. Poeta, escritora, tradutora e editora, viveu na Colômbia, Argentina e EUA, para aprofundar-se em História da Arte e Estudos Latino-americanos. Publicou diversos livros entre poemas, romances e infantis. Nitzán recebeu muitos prêmios literários israelenses (como o Prêmio do Primeiro-Ministro para escritores, o prêmio para escritoras, prêmios para poetas iniciantes e para livros de poesia de estreia, o Prêmio Tchernichovsky para tradução exemplar) e participou de vários festivais de poesia locais e internacionais.

GRAÇA

O insulto da fome ao pobre tu não aplacarás
e o desvelo do vingador tu não acalmarás
e a casa a ser demolida tu não protegerás com teu corpo
e o carrinho da bebê impulsionado ao céu por um
redemoinho
tu não apanharás nem baixarás suavemente
e o reino do mal tu não expulsarás.

Volta-te então para tua casa

para aquele que te ama
para o único que é teu
para o apelo amarelo nos seus olhos estreitos
e enterra o teu rosto em seu pelo.

Uma carícia
para um gato
no mundo.

A PRIMEIRA A ESQUECER

Tudo será apagado para trás. Finalmente
teu corpo pendendo sua altura sobre o piano,
tua cabeça para o lado, o quarto de sorriso,
camas e batentes abaixo da tua medida –
pelo caminho se perderão guindastes e armazéns
ao longo do rio, estátuas de touros e ferrugem,
aquelas ruas vazias até o espanto.

O que lá empurrou todo mundo para suas casas talvez
nos tenha atiçado um ao outro. O tempo era curto,
salobro, exigia o rápido –
deixa-me ser a primeira a esquecer, aonde formos
faremos doer. Minha retirada será mais longa que a tua,
no hotel barato o travesseiro sintético me expelirá
do sono, morderei teu nome

ou baterei minha cabeça noutro sonho? Pendendo
sobre mim, sobre o piano – não é preciso
que escrevas, deixa-me cerrar, ser a primeira,
de qualquer modo, ao sol forte quem poderá acreditar
nas palavras que subiam de nossas bocas pelo ar gelado,
como nuvens.

ATLÂNTIDA

Um pátio coberto com apenas uma roseira no canto
Um negro focinho e latidos raivosos através da roupa colada
Uma gata torta sobre o muro, seu olhar ansioso
Uma pilha de vestimentas na calçada à espera de ser recolhida
A escuridão que, rápida, desce
Uma lâmpada econômica na janela atrás da passiflora
Um rosto iluminado pelo brilho azul de uma tela
Uma menina de bicicleta chorando por uma mãe que não espera
Duas outras, a pequena carregada a tiracolo pela irmã –

Todo vocês eu já vejo embaixo d’água.

ASSIM

O gato escapando em um perfeito arco
sobre a cerca, as crianças, rindo atrás do muro,
não saberão como a dor ataca
como uma voz que incessantemente lamentava,
e de repente é ouvida.
Que brava paciência
teve o frágil professor de piano, como,
quando os demais o deixaram um por um,
olhar para baixo, eu permaneci a última
pela música, ou pela fragilidade,
as mãos ainda apertam o livro
quando os olhos se fecham,
assim deve-se preservar o amor
porque, como uma estrela, ele nos abriga nas noites
mesmo morto.

EMPOBRECIDA

Enquanto não escreves algo
talvez sequer tenha acontecido

Logo crerás que todo o escrito
aconteceu de verdade

Tua história se traça com uma mão
tua vida se apaga feito nevoeiro sob um sol desmedido

Vastos cômodos aguardam tuas palavras,
despovoados

Tua voz se espanca nos muros e volta a ti distinta,
temerosa como a de uma menina

Para onde foram todos?
Estão todos na praça, festejando

Acalma-te, quem nunca foi teu
não poderá jamais te abandonar

Abres o teu caminho através de
oferendas, todo o desnecessário

sussurrado até ti
como drogas

até o fim da noite entregarás
os segredos mais ocultos a completos desconhecidos.

Não é um banco verde no quarto das crianças
é um crocodilo
não é um crocodilo
é o futuro:

Eis o movimento lento dos seus olhos
Eis o terrível bater das suas mandíbulas

Mas onde estão as crianças?
Este não é mesmo o quarto das crianças
Este é o quarto da infância.

Eis que tu te encontras nele
em teu vestido pequeno e a tua boca fechada
e todo o teu crocodilo diante de ti.

DIAS FECHADOS

A manhã se abre a uma escuridão contundente como alcatrão
e as pálpebras tremem dentro de um mundo em tremor,
o olhar se bate novamente dentro do crânio
e uma voz nele repete salva-se, salva-se

É de manhã e todas as palavras súbito são cinzas,
esbarram agarradas a seu sentido até
o gemido, como no primeiro dia,
ouve-se só um golpe de asa afastando-se

Que fazer com este dia, que faremos
com o nunca mais, sem defesa
frente ao inimigo dentro da própria casa,
o próprio corpo. A manhã se abre à escuridão

como se estivéssemos sepultados vivos no fundo de um poço
e a solidão feito um bandido implacável
retornará mascarada e com novo nome
desta vez para ficar.

*Poemas do livro “Atlântida”, Editora Ars et Vita, 2022.