Luiz Carlos Goulart de Miranda nasceu em Uruguaiana, Rio Grande do Sul, a 6 de abril de 1945. Um dos mais premiados poetas brasileiros de sua geração é autor da obra poética mais extensa do mundo, com 3.432 páginas contabilizadas (seguido por Pablo Neruda, 2.080 páginas; Ezra Pound, 837 páginas). Com mais de 45 anos de carreira literária e 33 livros publicados, foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura pela parceria da PUCRS com o comitê organizador do prêmio sueco. Foi membro da Academia Rio-Grandense de Letras e da Academia Sul Brasileira de Letras. Em junho de 2010 recebeu uma insígnia da Academia de Artes, Ciências e Letras de Paris. Luiz de Miranda faleceu no dia 29 de julho de 2022, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

TUDO VIRA VENTANIA
.                                       A Lygia Fagundes Telles 

Deus é sonolento na ternura das manhãs,
sob um céu escuro, coberto de picumã.
É chuva que dói na alma o que se avizinha,
pedrenta memória que comigo há muito caminha,
e vai emudecendo os faróis da linguagem.

Tudo é luta vã quando a melancolia alinha
o que se perdeu na pedra ou no ofício de cantá-la.
Sou o que não sabia e tudo vira ventania,
varrendo os segredos longínquos da infância,
as folhas de outono no pátio da antiga casa.
Não há sono, apenas um pesar deserto.
Amores tive e amores há no alvor da tarde,
quando for jardim e luar aberto.

Antes disso, gasto o que não tenho,
no lenho feroz do vendaval.
A estrada de onde venho perdeu-se de mim,
segui por caminhos vagos, vácuos, incautos.
Minha sorte derramou-se nos aramados,
percorro os corredores do meu passado,
albergo as possibilidades últimas da esperança.
Comigo fui aos monturos do esquecimento,
e de lá não voltei, houve-se em adeus
o que mantinha o coração vivo.

Tenho andado por cidades vazias,
sob toldos de miséria e abrasivos.
Quem há de abrir-me a porta do futuro,
se os muros da solidão são mais altos e seguros?

Rejeitou a piedade alheia,
aquela que me olha e não pranteia
o que comigo dói e corrói intermitente.
O vento varre até a vergôntea da minha vida,
estou saindo do sul do mundo, estou de partida.
Não deixo rastros, memória ou herança,
sou-me o último som da lágrima,
que vai roendo sua pequena vingança.

TUA LEVEZA

Voa para o alto
este coração em sobressaltos
carregados pela tua
leveza inesperada
me levas simplesmente
como a uma ave
ao regaço redondo
de um céu emborcado

NINGUÉM ME ESCUTA

Os sóis não se avistam.
Em vão chamo teu nome
que a tarde amarga anuncia.
Ninguém escuta
as roucas palavras
que se dilaceram
.          aos ventos
como se fosse estrelas
ou cegos pensamentos.

A VIDA VIBRA

A vida vibra
no lado oculto do mar,
e a seguimos por navios
deserdados do cais.
A música tecida nos umbrais
onde a vida espia seu mais alto voo.

Sete horas úmidas batem
no sino do adeus.
O que era meu e talvez teu
fazem-se em minutos perdidos,
que trinam quase esquecidos,
quando o pó dos meses avança
sobre nosso corpo, nosso suplício.

Nenhum dia será o último,
nem o primeiro,
.                 voamos
entre maçãs e pássaros,
longe demais dos calendários.
A agulha vã do tempo
vai girando a voz
sem bússola do infinito.
A vida vê-se no vazio,
como uma pergunta sem resposta
é o oco arfar dos que esperam.

Não responda aos que amam
ou aos que pedem amor.
Amor é apenas um verso
sem resposta
que se deixa morrer
na escuridão da estrela.

Depois chegará o momento
que nem serás lembrada,
como tantas outras
que se julgavam amadas.
Apenas o vento varre as distâncias.
Estou a caminho de um novo amor
que vem luzindo no começo da estrada.
A vida sempre surpreende,
quando parece morta
é que ela vem renascida.

NOITE

Move-se dentro da paixão
um animal noturno e azul.
Move-se a sombra
do que se sonha, cobra
no pó cego dos caminhos.
Move-se a luz
do amor urgente,
presença antiga,
noite nos ombros.
Aqui dividem-se os dias,
os íntimos minutos,
o que arvora fora do corpo,
o que no fundo é amor,
com seu pulsar febril,
amor que trabalha as vozes,
que brilha nos olhares,
estrelas deserdadas e nuas,
que quando amares serão tuas.

INFORMAÇÃO AOS DEUSES

Informe aos deuses
que estou só e triste.
E amo o mais que perfeito dos adeuses.

Informem que tenho medo
e à noite choro
e mordo a nua pele dos segredos,
e à lua imploro
a sua face dourada
que me roubou minha amada.

Sou cego pelo caminho.
Padeço a doce insônia do desejo.
Minha grande dor é o beijo
que tirei de tua boca.
A avareza louca
galga o coração amante
e me faz cada vez mais distante,
na doce voz de teu sexo quente.

Informem que estou doente,
que busco o impossível,
como um cão que esqueceu sua casa.
De joelhos, na terra, é visível
a amargura de quem perdeu as asas.
E, assim mesmo, voa para o abismo.

Giramos todos perdidos
no semblante dos caminhos.
O vento do adeus é ardido
e não sopra as velas do destino.
As flores se apagam na memória.
Se amor não há,
os jardins padecem a saudade.

Vamos penando ao triste véu da beleza
que se gravou no mundo
com o nome dela
e vive a acendê-la,
como a única estrela
que palpita sempre à noite.
Sozinhos vagamos,
reascendendo na alma
as lamentações da ausência.

E meu canto é reza
nos baixios da sombra
com o cristal da lágrima
que sempre nos pesa
como fardo ao ombro.
No próprio escombro
de nossa dor,
morre-se de amor
nas grandes horas,
que velam por nós,
aos umbrais da aurora.

Como não vens à claridade
que o dia anuncia,
resta-me a graça triste
que no verso resiste.
Fica batendo no coração,
o ouro a luz da canção.

E assim peço a misericórdia dos deuses
que para mim renasça, de repente,
a flor azul e encantada,
que traga em si a mulher amada.

SIGNOS DE PARTIDA

Cortejos de ausências, signos de partida
uma imemorável figura em cada coisa.

Mãos voadoras trazem recados
da menina azul que habitava
os anos de colégio.
O instante exato roubou-me a fêmea
e o tempo esfacelou o corpo
em esperas e partidas.

A noite sinou-me
a sangrentos sinais.
O tempo de chagas
cobriu os sentidos.
Vestido de espada,
vertendo manhãs vermelhas
conduzo restos do corpo.

Acenos de rosa transpassam
os vitrais de mim mesmo
e morrem no gelado silêncio das ausências

ELEGIA DO INSTANTE

O instante rústico
rutila restos
de imagens mortas
e a flor da manhã
esconde meu rosto
no ventre espetalado

O instante escorrega
a carga das horas
carrega sem sombra
soma silêncio
sonda mistérios
desta (pa)lavras
medidas no medo

O instante é fato
na construção do ato
o instante é grito
na boca do irmão
o instante é tédio
na mão côncava
o instante é logro
na terr’arada
o instante é laço
no espaço em fúria
o instante é luto
no vulto em luta
o instante é ventre
entre parêntese
o instante é sobra
sobre nossa sombra
o instante é vida
no caminhar da morte

Seguindo segundos
rodam relógios
rondam mundos
o instante estampa
o instante estala
o instante é fala
o instante é bala
o instante explora
o instante explode

Diante do instante há sombras
que descem agonias sobre as horas
agonizam canções de embate
flechadas bandeiras de combate

O instante trouxe rosas transfiguradas
de ausência para as mãos de espera

*Poemas do livro “Luiz de Miranda – Melhores Poemas”, Global Editora, 2010.