Fernando Fabio Fiorese Furtado nasceu em Pirapetinga, Minas Gerais, a 21 de março de 1963. Poeta, jornalista, escritor e professor universitário, mudou-se para Juiz de Fora em 1972, onde reside até hoje. Durante os anos 1980 editou o folheto de poesia “Abre Alas” e a revista “D’Lira”. Entre as suas publicações estão: “Leia não é cartomante” (1982), “Exercícios de vertigem e outros poemas” (1985), “O ossário do mito” (1990), “Trem e cinema: Buster Keaton on the railroad” (1998), “Um dia, o trem” (2008), “Aconselho-te crueldade” (2010), dentre outras obras.  Atualmente leciona Teoria Literária e Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

AS CIDADES COMO OS HOMENS

Tudo o que antes foi dito, mesmo com certo abuso
Dos caprichos de quem não nega a digressão,
Serve às linhas abaixo, tem propósito e uso:
Aclarar o que tenho como tribulação.

Origem não existe. Mesmo quando o sujeito,
Na prosa de dizer-se, resolva prestar contas
Da gênese de um tique, de um ou outro defeito,
Daquela qualidade que não raro lhe apontam,

Trata-se sempre e sempre de inventar a mecânica
Que na vida não há, de surpreender em si
Os sinais de seus mortos, empresa menos pânica
Do que saber-se acaso, um precário croqui.

E mesmo por escrito, quando a pessoa assenta
No papel as memórias, não faz menos nem mais
Do que eleger nas modas e nas fácies parentais
Aquelas que lhe dão sentido desde trás.

Como ocorre aos homens, as cidades também
Cuidam de registrar pelas mãos dos cronistas,
Os fatos e os heróis que ao poder convêm.
Mais e antes o retrato da casta de alta crista,

Grafado com as pompas do estilo beletrista
E com as artimanhas que raro escriba tem,
Uma vez que se trata de uma edição revista
Das praxes e dos feitos, conforme a gente bem

Queira mostrar-se culta, rasurar os arquivos
De seus crimes e vícios, adornar a família
Com os brios que faltam, manter os adjetivos
Mais os verbos de ação sob estreita vigília.

E assim foi que se deu mesmo em Juiz de Fora
(Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat),
A fábula com ares ora de dogma, ora
De cabal axioma – e podes atinar.

Qual foi a mãe de todas as tais tribulações
Que no título aponto: como botar abaixo
Certo constructo feito tanto de aberrações
Quanto engenhos escritos num viés o mais graxo?

CONCLUSÃO

Eis afinal a história e tais tribulações.
Também ditas as minhas, também de outros antes,
Todas mui comezinhas, como sói aos senões
Enquanto se acumulam nas memórias e estantes

– Até que se alevantem como versão inteira
E acabada da história. Ninguém está isento
De emprestar seus caprichos, quimera e bandeiras
À escrita fantasma desse oco documento.

Era de esperar que, entre o douto e subido
Engenheiro alemão e um criador de mulas,
Os cronistas tomassem o mais cauto partido,
Pois tratava-se apenas de respeitar a bula.

A que serve o remédio de um herói sem retoques
Ou meter algum brinco nas lides da família
Tostes senão ao truque da pobre Belle Époque
A que refere Christo, o mesmo da armadilha

Cifrada no bordão: “O Rio civiliza-se”?
Assim, cumpre dizer, não há verdade assaz
Quando a letra da História na fábula realiza-se.
Então, que viva a gente da ficção que lhe apraz.

DO HERÓI-CIVILIZADOR

Os mitos não decidem entre ruína e obra,
Entre cosmos e caos, posto que ambos inteiram
O mesmo movimento com que os deuses manobram
O tempo e as criaturas – bárbara brincadeira.

Entanto, não é igual ao jogo que jogamos
Nós quando em tempo esconso e em lugar sem remates,
Quando mortos os deuses e quanto lhe fiamos
– Das linhas do destino até o prosaico desate.

Daí, não por acaso, as gentes vão à cata
De algum outro estalão, metro de todo alheio,
Com o qual aprumar a história em vulgata,
Conforme o figurino e a Europa de esteio.

Como disse lá trás (e súbito empaquei
Para causar suspense), mesmo em Juiz de Fora
(E repito este trecho, o recurso que achei)
Gente de escol cuidou que fosse a vez e a hora

De pronto jogar fora tudo quanto de feio,
Imundo e vergonhoso se deu nessa empreitada
De, com astúcia e armas, tomar o chão alheio,
De submeter os pobres à peia e à piada

E com as tripas destes dar coração ao clã,
De lustrar com latim o incesto e a tocaia,
De, por fim, apagar a memória mais chã
Para alinhar a história conforme sua laia.

Melhor que nenhum bruto paulista ou das Minas
(Ou mesmo alguém da Corte), de linhagem suspeita
E passado sombrio, tivesse esta vitrina
De quem meteu nos eixos e tornou escorreita

Terra afeita tão mais ao Judas que ao Cristo,
Ao angu com taioba que ao boeuf bourguignon,
À luxúria do visto que à crença no previsto,
Ao cru que ao cozido, à lida que ao dom.

Pois dar ares civis a esse sertão menor
Pedia maior lustro – Alguma língua mais
– Um diploma, quem sabe, e era o mel do melhor
– Calhava muito bem certa rudez assaz,

Militar, se possível – Uma renca de filhos,
Virava pai do povo – Fosse homem dado as obras,
Que alentado remate! Não demandava ter brilhos
Tantos e assim tão altos – quando é demais a sobra

As gentes desconfiam. Além do que, é claro,
Não estavam à cata de algum santo ou gênio,
Bastava ao sujeito ter devido preparo
Para fazer-se de, aturando o proscênio.

Não foi maior o espanto que o cabal regozijo
Quando calhou de dar naquele freguesia
O tal alemão Heinrich, com idade mas rijo,
E outros atributos, mais do que se queria:

Soldado em Waterloo, engenheiro formado,
Um fazedor de estradas, de filhos e de mapas.
Halfeld, sob este nome de homem civilizado,
Julgaram, a Europa nunca mais nos escapa.

*Poemas do livro “Romance dos desenganados do ouro & outras prosas”, Editora Faria e Silva, 2024.