Thereza Christina Rocque da Motta nasceu no dia 10 de julho de 1957, em São Paulo (SP). Formada em Direito, é Poeta , tradutora e editora-fundadora da Ibis Libris, além de uma importante ativista cultural, principalmente do Rio de Janeiro, onde vive. É membro da Academia Brasileira de Poesia (Petrópolis-RJ), coordena e apresenta o encontro “Ponte de Versos” desde 1999, reunindo grandes poetas na livraria Blooks, em Botafogo.
Ode.
. Para Afonso Henrique Neto
O que me torna rara
não é tua mão que conheço,
ou teu braço,
ou tua boca.
O que te torna raro
não sou eu que me ausento,
ou a voz que não ouço,
ou o beijo que me falta.
O que me faz mais cara
é teu segredo absurdo,
teu caminho agudo,
tua ode ao mundo.
Arco incompleto.
As asas estão prontas. Temos sempre justi-
ficativa para cometer um crime. O céu está
coberto. Em teu voo, o movimento abrup-
tamente interrompido. A noite esparge
claridade. Em teu repouso, as asas estão
partidas. Principiar a fuga, impossível. Teu
gesto, circular, repetindo, incansavelmente,
a perfeição de teu braço. O espaço redo-
bra-se sobre teu peito. Teu rosto torna-se
visível. O amor é suficiente.
Terminal.
. A vida é que me aprendeu
. Olga Savary
No secreto túnel
permeias os obstáculos
– um livro escondido,
a cara no chão.
Sacas revólveres
dentro do quarto
e para mim dizes:
– Bom dia.
O papel debaixo do vaso
tem um verso que não li.
O verde oculta meu poema.
E a caixa de sonhos,
quadrada,
tem cubos de gelo
para teu uísque.
Guardas o mel em compotas
das frutas plantadas em casa.
E teu silêncio é mórbido,
Cristalfonte,
de onde emergir é impossível.
Meus livros
– teus livros –
emprateleirados
sofrem prisão sem motivo.
Quero abrir-te em folhas de estanho
e ter teu sorriso finalmente lapidado.
Teu desígnio é a morte.
Em tumbas de sacrilégio.
Foice manchada no escuro,
face marcada de tédio.
O som de cristal
na parede de vidro
tomba teu mistério por terra.
És antiga e enclausurada.
Moí teus desejos
com pilão estranho.
Teus passos já não se ouvem mais.
Roubei-te a forma,
prazer e sorriso.
Pintei-te num quadro,
para sempre, desformada.
Queres ouvir meu segredo?
Ele não é igual ao teu.
É frágil gota de sangue
coagulada em frente ao espelho.
Nasci antes de ti
e tua vinda foi o fim do acalanto
que, menina, fiz-te ninar.
Os leões coroados,
na sala,
guardavam teu pasto e alimento.
Joio e trigo
resolvi chamar-te
para tudo que tinhas
e não tinhas mais.
Balaios de gatos miando,
mesa posta em contemplação,
cálices vertidos de vinho:
nódoa em tua roupa usada.
Queres o mistério da alma?
Pois te dou sem embargo de mim.
Todas as coisas possíveis estão aqui.
Tapete cinza para meus pés,
cadeiras respaldadas em silêncio.
Quero brincar com teu passado
e fazer-te crer
que tudo não passou de engano.
Enganei-me e enganei a ti.
Sou espião de tua alcova.
Teu riso, Cristalfonte,
é pérfido e distante.
Que esperas de mim?
A arca da aliança está desfeita.
Sobre ela pássaros pousaram à noite.
E amanheço sem distúrbios na alma.
Ligo o interfone e te chamo:
– Mulher, acorda do teu sono.
Ouve-se a rebentação ao longe
– o mar não é o mesmo.
Produz marulhos dissonantes
e, em casam
dormes feito paquiderme.
Cestas e castiçais sem velas
perfilados na estante,
conchas, areia, tudo dentro de potes:
querias guardar teus segredos?
Quebrei-os todos, sem saber.
Tua casa é o claustro
onde comes em silêncio,
vagas noturnamente em desespero:
tua solidão é imensa e irreversível.
Tua memória – um pouco de chuva
sobre o jardim.
Jardim de apolináceas.
Mero recanto de medo.
Sofres? Sofres comigo.
Porque invadi tua morada.
Deitei-me sobre leito frio
e não fui bem-vinda.
Abri os livro – aprisionados –
e li os versos de tua ausência.
Loucura dissimulada em cantos
de Nefertiti ao silêncio da noite.
A lua em eclipse
– neste dia aziago –
afeta-te como uma praga celeste.
Não há explicações,
Cristalfonte,
apenas segredos.
As faces estão hirtas
e tu falas sozinha.
Morreram antes de ti,
e tua que nem sabias da morte.
Vida – em guardados de avó.
Roupas embebidas de naftalina.
Vestir – ato impensado
após o banho de cânfora
– faz-te mais velha que tu mesma,
que tens a idade da pedra.
Fossilizada e eterna,
perdida e dissipada.
Teu hirto, Cristalfonte,
é morte.
Boi no repasto da tarde,
boi preto, manso e sem saudade.
As cadeiras gemem,
o silêncio suspira,
ouviste?
Não, nada.
Apenas tua sombra vaga
entre escombros.
E a visão pelas janelas
do fundo da casa é curta.
Tua verdade é mentira.
*Poemas do livro “Joio & Trigo”, Maat, 2022.