José-António Chocolate nasceu em Santa Eulália, Elvas, Portugal, em 1958. Poeta e economista, muito jovem começou a publicar poemas em jornais e revistas. Foi o principal dinamizador do GPES – Grupo de Poetas e Escritores Setubalenses (1984- 1991). É membro da Sociedade Portuguesa de Autores, da APEL e da Associação “Casa da Poesia” de Setúbal. Colabora em jornais e revistas regionais, na publicação de livros de outros autores, incluindo algumas Notas de Apresentação e Prefácios. Tem integrado o Júri de Prémios de Poesia (entre os quais de Bocage e de Sebastião da Gama).


A frágil barca que a tempestade não quebra

Teus braços abarcam a barca que ao mar se faz,
a quilha é palavra aguçada, o remo a deriva do fonema,
a espuma salpica o rosto desabrido, lavado e sentido
e o que nos fica é bastante para decifrar o poema.

Esse mesmo que é lugar onde os poetas se encontram
adivinhação dum mar profundo, de silêncio e infinito,
repetidamente sobrepondo-se na linha do horizonte
mordendo o desespero, avivando o sorriso, calando o grito.

A frágil barca que a tempestade não quebra
que desafia a onde com o destemor de quem ama
e faz da noite uma prometida madrugada.

Talvez seja o fogo a que não se conhece a chama,
casa inventada a que basta a pedra,
o sítio onde os poetas se encontram e não têm morada.

Ofício de poeta

Procuro nas palavras a palavra certa,
a que falta descobrir para me descobrir,
a mim que me falta o arco e a seta
e o alvo que sou pretendo encobrir.

Talvez a palavra mais imperfeita
que de mim requeira toda a maestria
para lhe moldar a massa de que é feita
e o traço talhar com sabedoria.

Palavra que o poeta faz em seu ofício,
a raiz que procura ao caule que dá viço,
como sangue nas veias, seu alimento.
Folha amarrotada de perdido resquício,
grilheta que se liberta e torna submisso,
suave brisa que se transforma em vento.

Modos de andar

.                              No Aeroporto de Lisboa

Andar de passo largo acelerado
Andar de calcanhar apoiado
Andar largo, meio manco, desequilibrado,
Andar aos solavancos, pausado
Andar aberto abandonado
Andar pensando em cada pé ousado
Andar descaído em frente ensimesmado
Andar descontraído e compassado
Andar aos saltinhos, desconfiado
Andar miudinho no calcanhar apoiado
Andar arrastado de pé pesado
Andar a dois de braço dado
Andar atrasando a cabeça, inclinado
Andar de mãos nos bolsos, espaçado
Andar pelos braços impulsionado
Andar com o olhar em todo o lado
Andar miudinho de cu apertado
Andar de cavaleiro de perna arcado
Andar aos saltinhos como pardal delicado
Andar entre andar e ficar parado
Andar vivo de peito alçado
Andar de boca aberta, ar cansado
Andar sem destino, desorientado
Andar sem rumo para qualquer lado
Andar parado, ficar cansado
Andar e esperar, ficar sem lado
Andar sem por onde ir, desesperado
Andar por andar sem destino marcado.

Há lugares que habitam em nós

Há lugares que fazem parte de nós,
sentimos as raízes fortes que criaram e sustentam,
oferecemos-lhes o húmus e a seiva,
renovação da vida na folha,
mesmo perene virá mais forte e capaz de vingar
ao vento e à intempérie.

Há lugares que se enrolam no novelo
que somos, o fio mais forte no enlace da memória
resistindo ao desgastado tempo.

Há lugares que roubam o corpo e levam
ao vagar distendido que desconhece
o momento na sequência de outros que hão de vir.

Há lugares que habitam e vivem em nós,
sabendo o lugar que lhes pertence.

*Poemas do livro “A Voz das Palavras”, Filigrana Editora.