José Manuel Nunes da Rocha, mais conhecido apenas como Nunes da Rocha, nasceu em Lisboa, Portugal, no ano de 1957. Poeta extremamente discreto e de muito poucas aparições públicas, iniciando sua trajetória literária em 1990, com o livro “Tráfico de Rimbaud na Costa Portuguesa”. Conhecido por uma poética marcada pelos neologismos, suas obras provocam imagens que vão da sublimação à inquietação num mesmo verso. Vive atualmente na cidade de Amadora.


MARINHA ENCASTRADA

É uma flor encarnada em areia no lugar
Onde param os autocarros
Em despojada vocação de maldade

Do outro lado da rua frente ao mar
Sucedem-se amnésias
Brancas imprecações a cada voo

Rasante dos pés em carne viva

Vêm todos de preto tudo ver
Poderosíssima fêmea sem cabeça
Os vinte anos mais que os prometidos

Uma adolescente em chamas de um lado para o outro
Uma praia abaixo da linha do horizonte
Um telemóvel rindo rindo
Um saco de plástico arvorada bandeira azul
Eu cabeça de cão alçando a pata
Aos pés de uma cama que passa

Lá vai o poeta, em chamas também
Dois dedinhos de pé na boca onde cabe
O oceano todo
Um naperon sobre um caracol esquecido
Com que limpa discretamente a boca voyer
Um jardim exclusivo de gardênias
E um rabo a correr também
Atrás da adolescente que não para quieta
Ó juventude despreocupada
E depois eu coçando a orelha

NATUREZA MORTA

A frente não condiz com o perfil
Entre um e outro
Três mil buldozzers
E uma hecatombe de flores
Fizeram manchete no Bild-Zeitung em 1960
Que prédio dizias ali havia
De bradar aos céus?
Seria novo? Assim assim?
Junto ao roda-pé dos dias
E ao formigueiro nos pés
Eis a cabeça de Ulrike
Pronta ao pequeno alomoço
Maravilha da nossa época

PHILIPS NMS 9100 (O NEOLOGISMO EM 1990)

Não retigas nem relouques
Tão apoucadamente o digas
Louca etc & tal
Modular o zimbro solar

Chegas a casa e não regressas
Com a lua assim tão pouco retocas
O amor há muito dito

Entre vox e língua eu estou lá
& vejo tudo mesmo quando
Partiste e repartiste o soluar

Mas perdoo-te
Carrego em enter ou na memória
Que tenho de ti nunca o print

UMA TEORIA PARA A INSURREIÇÃO

Primeiro um passo em frente outros dois
Para os lados
Seguem-se uma manta de água sobre
Um lençol de sangue em movimento
À ré
O quarto escuro da adição
De duas e outras duas esperas
Até à chegada do poeta de perna cruzada
E boquilha ascendente
Seguir-se-ão ainda
As lanternas mágicas
As lanternas trágicas
E só depois muito depois
O futuro

Completa enfim a trajetória
Das mais altas montanhas às abissais vulvas

Ficaram prestes à geografia por roldanas
Meteorologia a pedido dos insetos convulsos

De coração aberto exposto
Em supersônica maca à chuva

Acionaram as válvulas e logo veio
O redentor coroado de moscas

O papel timbrado a apresentar
No mausoléu de Freud tim por tim

Como sempre muito tempo depois
É que veio o peditório

Em formato A6 em
Decúbito dorsal como sempre

*Poemas do livro “Que Horas São”, Editora &etc, 1998.