Patrícia Lavelle nasceu no Rio de Janeiro, em 1971. Poeta professora de teoria literária e pesquisadora do CNPq, fez doutorado em filosofia na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), de Paris, cidade onde morou entre 1999 e 2014. Estreou em poesia com “Bye bye Babel” (7Letras, 2018/2a ed. 2022, menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 2016). Este livro saiu na França, em versão translíngue (Les presses du réel, 2023), e foi traduzido ao espanhol. Publicou também a plaquete Migalhas metacríticas (Megamíni, 2017). Também é autora de livros de ensaio publicados no Brasil e na França, entre os quais o mais recente é Walter Benjamin metacrítico: uma poética do pensamento (Relicário, 2022).
Interior burguês
É a ideia da casa
que te parece
inadequada
e tão gasta –
uma palavra
que você encontra sempre
na boca dos outros,
e não poucas vezes se oferece
oca
como um cavalo
como um presente
que não pode
que não se pode
aceitar.
Sombras longas
Nas sombras que um foco de luz
projeta no fundo de uma caverna
Platão projetou a imagem do saber
ilusório das imagens
O meio-dia é a hora lúcida, a hora do rigor vigoroso
pensava Nietzsche, sem a sombra de uma dúvida
Mas certas verdades sobrevivem à sombra:
são elas que obram nas sombras
e como sombras se alongam
quando declina o ângulo
de incidência
da luz
Origem
No início de tudo era um ritmo
e a refração acústica
daquela voz
no líquido já existente
antes disso
que se distingue de tudo:
esse ritmo
que me precede
e permanece desperto
quando adormeço
Uma conversa com Orides Fontela
(a partir de “Tempo”, segundo poema de Transposição)
Li o seu poema
em silêncio
num murmúrio
no som da minha própria voz
Sei que vou reler ainda
muitas vezes
e que durante muito tempo
ele vai ficar trotando nos meus fluxos
sem rédeas
como uma pergunta informulada
sobre esse transporte
que acontece
quando a palavra cavalga
o fluxo
queria que você estivesse viva
e esse meu poema
pudesse ser
uma conversa
Não só porque há verso
em toda boa prosa
(coisa que você
sabia bem)
mas também
pra remontar na fala
ao fluxo
ainda xucro
e num salto
transpor
contigo
o ritmo
em canto em vida em flor
*Poemas do livro “Sombras Longas”, Relicário Edições, 2023.