Luís Seoane López nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1º de Junho de 1910. Poeta, escritor, editor, gravador, desenhista e pintor, é considerado um dos mais importantes artistas plásticos galegos de seu tempo. Filho de imigrantes, foi morar na Galícia, Espanha, ainda criança. Sua obra,, expressionista e abstrata, reflete esse amor a Galiza e sua ânsia por recuperar paisagens, símbolos e personagens galegos para fazê-los universais. Faleceu no dia 05 de abril de 1979, em Coruña, na Espanha. Em 1994,  foi-lhe dedicado o Dia das Letras Galegas.


CABO

A Derradeira Imagem. 1936

Seis ou sete séculos depois.
Antes ou depois. O quê mais tem!…
Pode ter sido mil trezentos e trinta e seis
ou mil quatrocentos e trinta e seis.
Tocavam o morto e não sabiam os culpados.
Todos os sinos da cidade tocam o dente morto.
Foi mil novecentos e trinta e seis.
Oxalá para sempre possa ser.
Eram só cegos ao mar e os pássaros.

A filha do sapateiro, ou do ferreiro, ou do alfaiate,
era levada pela blusa pelas ruas,
marcadas a fogo três letras na frente,
a cabeça enfeitada, escarnecida,
despojada dos longos cachos loiros,
gritava as letras da frente.
Eram só cegos ao mar e os pássaros.

ORAÇÃO DO ARTISTA QUE VOLTA

Queremos os ossos da nossa testa
coaxar na tua testa de pedra,
Mestre Mateo.
Fomos pelo mundo com medo.
Ainda temos medo.
Medo a tudo.
Como você, Mestre Mateo,
quisemos perder esse medo
aos homens, aos deuses, às coisas,
a tudo que não sabemos.
Pedir perdão pela nossa obra
não sabemos a quem.
quiçais
aos deuses, aos homens, às coisas.

De longe vamos caminhando
para encontrar com os olhos
esta terra nossa.
Tua e nossa, Mestre Mateo.

NO NEVOEIRO, SANT-IAGO

Para acertar nossa cabeça de urso
em sua cabeça de pedra,
e dizer a esta terra:
Te levamos sempre conosco
através do mar e do deserto
entre homens cobiçosos e andarilhos,
temendo nos perder.

Agora que estamos sós e é tarde
viemos de longe,
das sombras,
como tantos outros vieram antes
a oferecer-te unicamente,
terra:
A nossa morte.

Amém.

A RAINHA DESPIDA

O povo assanhado e justiceiro,
a Irmandade dos homens cegos,
trata de segurar a paz com a violência
ajustando na Rainha seus sapatos
Juntam-se com eles por castigo,
soldados revoltados, artesãos e mendigos.

Fugitivos. Mantêm-se alheios
o bispo e os condes.
Encontrados os arautos silenciosos.

A Rainha vencida no seu orgulho,
no olhar o medo e o assombro,
choramingando e gemendo dobras
trata de livrar-se dos braços
que a arrasta pelos cabelos.

NO BOSQUE DA CONDESA

Quando os médicos recomendavam às moças
as conjunções do planeta Marte
e aos velhos o temor de Saturno
no centro do bosque deixei passar
sem estendê-la as minhas mãos abafadas,
a bela garota estranha e solitária,
enfeitada de violetas e trevos verdes,
que olhava fixamente para a estrela.

O ENTERRO DO MENDIGO

De noite e em um campo aberto ao redor da cova
juntam-se os catadores de lixo farrapentos mendigos
de bengalas tortas, mãos lanhosas,
que fazendo coro de plantas
no adro espinhoso de Santa Maria Salomé, pregam
pelas suas desdentadas bocas de gárgulas,
em anteras verbais, tristes e doídas:

– Uma caridade pela lei dos Santos!
– Por todas as santas virgens do céu!
– Pelas benditas almas do purgatório, senhor!
– Tive honras e fiquei soberbo!
– Deus nos livre, minha dona, de todas as lepras!
– Pela nossa estupidez, senhor, caímos na pobreza!

Desde que seus passos foram encurtados pelos anos,
o mundo aumentou para eles.
Sofrem maus-súbitos, fomes, coitos e resfriados.
Sobre o cadáver do mendigo mais velho,
envolto em seus trapos escuros,
eles se abaixam e choram com lágrimas verdadeiras:

O sonâmbulo que goza junto com a cega sem vergonha
A cega sem vergonha.
O anão que faz cócegas na velha piolhenta.
A velha piolhenta.
O toque que deixou prenha à moça louca.
A moça louca.
O ex-sacristão que roubava o óleo e a cera de seus espinhos,
e a velha que conjura a serpente no céu.

Todos deixam cair sobre as longas barbas brancas
do mendigo morto,
nos seus farrapos pretos,
umas flores silvestres
e a terra que bicam com suas bocas sem dentes.
O que agora é o mais velho de todos
cerejas sobre os mortos,
em nome dos mendigos de Santa María Salomé,
uma estrangeira e estranha moeda de prata
como uma esmola que se enterra para sempre.

Poemas do livro “Obra Completa – Vol. 1”, Edicións Xerais, 1989
Tradução de Igor Calazans para o Recanto do Poeta