Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira nasceu em Mococa, São Paulo. Poeta e romancista, estudou na USP, onde se graduou em Letras e ingressou na pós-graduação. Na década de 90, abandonou a academia e foi morar em Arceburgo, MG. Venceu, em 2022,  os Prêmios Machado de Assis e o de “Melhor Romance” da Biblioteca Nacional, com o livro “Siameses”.

do autor para o autor

dizer tranquilamente: já morri
(as palavras se encontram no vazio)
então, este equilíbrio puro, em nada
é simples como andar de bicicleta
mas ouço: estou aqui, aqui, aqui
eco no espaço aberto, um assovio
persistente do vento, uma guinada
brusca do rosto, em voz que me incompleta
– voltado para mim, irei perdido
pelas trilhas escuras de mim mesmo
até imaginar o outro, e sê-lo
neste passeio inútil, sem ter sido
aquele outro eu mesmo, mas eu mesmo
sei que pedalo para o atropelo

a morada

bem-vindos à casa
que construo agora
com o que imagino
seja verdadeiro
inútil convite
se o andaime da vida
eia, lá no alto
estou operário
só, a construir
com pedras de carne
tiradas de mim
repouso e agasalho
obra inacabada
do princípio ao fim

no morro da babilônia

madeira, prego e lata
em pontos de ferrugem
por onde o mar se mostra
sendo a pele das coisas

óleo de milho, azeite
leite em pó, tinta acrílica
quarto, sala, banheiro
(mas é preciso sol)

então uma janela
recorta a construção
feia, torta, zarolha

nas friagens de julho
alguém sempre dirá
enquanto um filho tosse

cansei de tampar frestas
nenhum barraco é bom
como os de um samba-enredo

no espelho despropositado do papel

a caneta estoura
e emporcalha o dia

bola de papel
no cesto da vida

arremesso e erro
(sempre a mesma história)

vou até o lixo
e desdobro a folha

tudo resumido
nos pequenos atos

o engano maior
na lasca de unha:

borrados de azul
em mancha disforme

dois olhos me fitam
(linhas ao acaso?)

não, não pode ser
criei-os de mim

o monstro sou eu
ali, o meu rosto

mal acompanhado
volto ao meu lugar

a folha escondida
no bolso da calça

por sorte, ninguém
parece ter visto

agora, é fingir
que não sou comigo

sai da frente

a morte vem metendo o pau
enfiando o pé na tábua
sentando o cacete
arrastou quem tinha de arrastar
os meus avós todos
os vizinhos velhinhos
mas agora atropelou um amigo meu
ele tem quase a minha idade, caralho
bom, tinha, né?
olha, não sou cara de pau pra dizer antes ele do que eu
passei da idade de brincar com ela?

(pra falar a verdade estou cagando e andando com medo,
.          sim
essa merda toda escorrendo aos poucos para os pés)

antonio, escuta o barulho das botas, antonio
a morte vem sentando a pua
e o meu pai sem dar a mínima pra isso
imitando talvez o seu pai, e o pai do seu pai, quem sabe?
age como se ela não fosse passar por cima dele
não entendo, ninguém parece ligar
todos que conheço não respeitam os sinais de trânsito
atravessa a vida fora da faixa de segurança
vão tocando a vida assim
eu, não
sei que a morte vem que vem
não tem jeito, não te como
(ganho mais se ficar só
zanzando por aí?)

*Poemas do livro “as visitas que hoje estamos”, Editora Iluminuras, 2012.