Tarso de Melo nasceu em Santo André, São Paulo, a 3 de dezembro de 1976. Poeta e advogado, é Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Começou sua carreira literária como editor da revista Monturo, em companhia de Fabiano Calixto e Kleber Mantovani. De 2002 a 2004, editou, com Eduardo Sterzi, a revista de poesia Cacto. Desde 2006 é um dos editores de K Jornal de Crítica. Além de sua atividade como crítico, editor e poeta, colaborou com a reedição da correspondência entre Paulo Leminski a Régis Bonvicino, “Envie meu dicionário”. Coordenou o núcleo de leitura de poesia Observatório do poema, na livraria Alpharrabio, em Santo André.

cinza

O que vai ser
dos nossos sonhos
quando não pudermos
mais dormir? Faremos
deles a vida acordada
(como quem não aceita
que jardins possam morrer
e planta e rega e cuida)
ou seguiremos assim
tristes e insones
sem que nada voe
no horizonte cinza
da cabeça que arde
sem desejos
no lençol?

pequenos

o nome disso é sorriso, o nome
disso é abraço, o nome disso é
amor, o nome disso é feliz, amar
demais o nome disso, o nome
disso é perder-se, achar é o nome
próprio disso, mas por um instante
(infinito em seu próprio rito)
não nos importa nome algum
entre nós e o mergulho nisso

você

ao som de:

guardo inencontráveis
memórias
ausentes de outro
lugar comedido,
se bem me recordo

troco o tempo
por você, e paro

nada se passe

vazio

o vazio a que nos levava o tal caminho
depois da ponte antiga por entre o rio de prédios
dizia mais do que procurávamos do que achá-lo
e era dizer o mesmo que nossos ouvidos
já um tanto cansados levavam até lá, até
a parte mais deserta distante do outro mar
o de ofertas ofertas ofertas ofertas
(não é falar dos néons para tocar a vida
implantada na noite nem trazer ao poema
homens-placa comida a quilo mulheres grátis
pois a cidade é mais e bem menos que isso)
e à hora estranha quando a rua guarda
suas garras e sombras são tudo o que fala
à infinidade de portas baixas e ônibus
que arrastam suas carcaças (e outras
igualmente exaustas) para fora do que são
(daquilo que podem ser sob os escombros
de seus sonhos ante a distância do sucesso
e os impulsos do fracasso) como o silêncio
luminoso
que os táxis carregam daqui a tão longe

fomes

pensando bem
tudo já virou ação

um filósofo qualquer
que nos visse diria
que não há nada
em nosso intelecto
tampouco em nosso corpo
que não tenha antes
sido granulado
pelos nossos inimigos

o que se aprende
quando se aprende
já vem mastigado

o que se fala
e tanto se fala
já tinha dono

o que se sente
mal a gente sente
já se tritura
já nos tritura

o que se cospe
deixa sempre um fio
em nossas bocas

a vida talvez
esteja farta
de ver como vamos
assim, sensatos,
desistindo de matar
nossas muitas fomes
ou de morrer por elas

até não importar
que elas nos matem

vermelho

fio desencapado
menino ainda
não se aproxime

calção e ódio
sem trégua
(veneno entre
os dentes, sorve,
exala, alucina)

senhor sem eixo
das ruas, sangue
que o corpo não doma,
ruma
inabalável

*Poemas do livro “rastro”, Editora Martelo, 2019