Carlos Eduardo Barbosa de Azevedo, mais conhecido como Carlito Azevedo, nasceu na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, em 1961. Poeta, editor, tradutor e crítico literário, cursou a faculdade de letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), voltando sua atenção para a poesia francesa a qual vem traduzindo regularmente. Conheceu o poeta José Lino Grünewald que o apoia em sua estreia com o livro “Collapsus Linguae” (1991), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de 1992. Foi editor da revista de poesia “Inimigo Rumor” e coordenador na editora Cosac Naify da coleção de poesia Ás de colete.

XI

GUARDAR UM DIA PARA QUANDO NÃO HAJA

O outono está na sala e o sol é como nenhum outro.
Há também algo como um espelho onde um velho se contempla.
Um chão onde descalça os sapatos.
Um cabide onde pendura as calças.
Pelo ar flutua a baleia branca, e suas luzes gotejam seiva dourada.

Sérgio Sant’Anna se foi.

O ESTALEIRO

Era bonito ver
à noite
da janela de casa
ou da mureta
da praia
o estaleiro
envolto na
aura de suas
próprias luzes
sobrepostas,
soldas, maçaricos,
refletores, holofotes,
luminárias pendentes,
arcos voltaicos,
trovões
de nenhuma
tempestade;
e
durante a
troca de turno
dos operários
no
corredor-limbo
a troca de olhares
metade
camaradagem
de potencial
rebelião,
senhas mudas
ou estridentes
como aquela vez
no portão
dando para
a rua
ou para os
hangares
(conforme-se
estivesse
entrando
ou
saindo)
a garrafa de
leite azedo
explodindo
contra o letreiro
espalhando
coalhos brancos
nos capacetes
amarelos
ou nos cabelos
recém-penteados
(conforme se
estivesse
saindo
ou
entrando)

SUTURA

Há noites que
são o ponto de
sutura de
uma vida inteira.
Em fuga
numa balsa
a norte daqui
transportando
gente ou
cigarros
contrabandeados;
num
transatlântico
enviando cartões
postais para
a polícia;
num quarto
com fantasmas
no exílio
escrevendo
O círculo de giz caucasiano;
ou mesmo aqui
neste terraço
de Biblioteca-Parque
no alto deste
morro que dá
ostensivamente
para o mar e
a Ursa Maior.
Ao nosso redor
crianças
confeccionam
cartazes para
a Páscoa
como operários
pintam cartazes
para o piquete,
fábrica e frenesi,
frenesi e fábrica.

Falamos com
elas e
para elas
desejamos o fluxo
o fluir
a flutuação
e, sim,
por que não?
o ponto da sutura.

Palavras podem
ser estrelas mortas
ou
recém-nascidas,
e
de suas mais
inesperadas
associações
nasce sempre
para algum
ponto de vista
(da balsa,
do transatlântico,
do quarto,
da biblioteca)
uma constelação
que redesenha
as hipóteses
de fuga.

Sombra sem origem,
o fantasma
me seguia
pelo centro
da cidade,
me alcançava
em plena rua,
me encurralava
contra as
paredes de um
fantasmático
cinema,
sussurrava:

“Há uma ideia
pendurada na
corrente de ar
escorregadia da
fronteira.
os olhos estão
muito quietos,
o relâmpago está
muito quieto,
diminua a
velocidade da sombra
e me encontre na luz
da fronteira morta.”

PAI

A soma das idades
do pais e do filho
dava 111
naquela tarde
no pequeno cemitério da Ilha
onde um
dos dois
deixou para sempre
a condição estável
(quanto a sua composição)
e de móvel
(quanto as suas posições)
e então
eu jurei:
pelo bico necrológico
do sol-corvo
que me furava os olhos,
por todos os afogados
do Reino da Necessidade:
pai,
a guerra acaba aqui
a dor acaba aqui
acaba aqui o escândalo
Jonas engole a baleia.

Nenhuma nuvem
ou voz de mulher ao redor
aliás
somos nós dois
aqui
(que te importaria agora
isso ou seu contrário?)
mais três ou quatro
funcionários desanimados
(súbito – e a suborno – solícitos)
e
a poucos metros
sob um excesso de luz suburbana
dois cães com a língua de fora
rosnando uma indecisão
cheia de promessas
e nada se conclui.

Eis nossa colheita
pela eternidade
intransplantável: sol dos infernos
cães
seus odores
terrores
e coitos,
e uma municipalidade
bem mais que
medianamente corrupta.

Esmaguei um mosquito
entre as páginas
do Livro de Condolências
uma pequena mancha
vermelha

O QUE EU AMO EM

Aqui as sombras das coisas que se movem bruscamente não se
.      movem
Deito-me no oco de um objeto em movimento.

Do lado de fora da sombra, você se move num vácuo de luz
.      branca,
se move por sobre a grama afundada da manhã.

Um exército interminável de indignação está agora no céu,
montando nuvens escuras, ondas turbulentas do mar.

Na linguagem tátil do sonho, você repete um nome sem fundo
.     ou forma
O emplumado platô do amor crava que a voz do espírito não
.    quer dizer nada a ninguém.

A própria chuva parece ser uma sombra, uma forma vaga de
.    amor que se estende até a grama do verão.
Você dança, num mesmo momento, em muitos pontos remotos
.    do planeta, uma varinha de ouro espetada no coque.

Tira os estropiados sapatos verdes de chuva de brechó que lhe
.    emprestou a moça do quiosque de waffers,
e vai se deitar nos pequenos meridianos, se for de madrugada
.    (muito sonolenta)

Você sabe que está ligada aos envoltórios da Terra, em torno
.    do seu eixo.
Você está girando e as sombras escuras estão rumando para
.   onde olham os olhos giratórios da chuva.

A batalha entre 100.000.000 de células fotossensíveis, um
.   complexe de espíritos transparentes de brilho azul,
contra estropiados sapatos de chuva.

*Poemas do livro “Vida: Efeito – V”, Editora 7 Letras, 2024.