Nauro Diniz Machado nasceu em São Luís, Maranhão, a 2 de agosto de 1935. Poeta autodidata, com vasto conhecimento em artes e filosofia, foi constantemente comparado a Fernando Pessoa, apresentando uma poética repleta de reflexões existenciais em cenários de violentas angústias sobre a presença ou ausência de Deus em nossas vidas. Recebeu diversos prêmios e teve obras traduzidas para o alemão, francês e inglês. Antes de falecer, em outubro de 2015, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”, concedido pelo Reitor da Universidade Federal do Maranhão. Nauro Machado morreu no dia 28 de novembro de 2015, ao 80 anos.


1083

Cabelo-anágua, ventre de uma casa
expondo fora o que por dentro é mágoa,
sequer não tendo de uma ave a sua asa
para voar num mar onde um céu deságua:
para queimar no inferno com a tua brasa,
ventre do fogo, ó cabelo a anágua,
recubro tudo quanto o todo vaza
pelo estéril mar de uma sanguínea água.
Ó cabelo da cor roubando o negro,
para ofertá-lo a tudo quanto é grotesco
neste universo: um pesadelo!
Ó crânio escuro por fora e por dentro,
para fazer-me entrar por onde adentro
com o pensamento! E eu só para sabê-lo!

1060

Feito falante como a procriar
de uma matéria apenas pela mente,
a nada ter de duro a mastigar
no pensamento onde a ideia é o dente,
ninguém se farta do que a fome dá
quando se faz real a toda gente,
pela existência nunca a saciar-
-se com o pão a estar da própria boca ausente.
Fome nenhuma igual será capaz
de saciar tamanha e limpa paz
na mesa posta para a solidão,
e onde — talvez — só Deus saiba de cor
a fome eterna a ser depois maior,
alimentando a boca noutro pão

1120

Já não quero a lembrança como porta
a se abrir para dentro do passado,
onde encontrar a minha vida morta,
embora ainda viva do meu lado.
E duplo nessa ideia que sou e me corta
com o gume de uma faca ou de um machado,
meu coração a doer em sua aorta
vai sangrando em mim em num poço tapado.
Se da infância abro trêmula garganta,
trinando na ave que hoje me canta
em velho céus de vivas agonias,
na humana soma a ser de uma semana,
a eternidade é o tempo que se dana
no calendário aberto sem mais dias.

1011

Ó obsessivo rosto em mim imerso
na solidão do olhar com que me apagas,
rolando insone sobre esse universo
de fundas rusgas por imensas vagas.
Ó meu infeliz senhor de fado adverso
pela cegueira a olhar por duas chagas,
nesse delirium tremens do meu verso
sobre o oceano onde por fim me tragas.
Ó cega estrela, pássaro com sarna
na comunhão da sede em funda poça,
onde beber o céu  que em mim se encarna
no solitário álcool em ébria louça,
e a embriagar-me até se acabar
na minha voz a que ninguém mais ouça.

1010

Num verbo vindo como duro texto,
naquele todo feito sempre em dois,
enterro as unhas como que num cesto,
para escrever quem sempre é meu depois.
Mistério oculto por fatal incesto
de mim comigo a estar onde Vós sois,
havereis de vir já nu ou no vestu-
ário que a morte pela carne pôs:
pois que unheiro adentro de outra unha
tanto cresceu a quem só para ele punha
o fungo vivo de matéria morta?
Nos versos gasto tudo que me traz
essa noturna e atroz madrasta às
pútridas dores que seu ventre aborta.

1023

Cobrei do corpo meus setenta e oito anos,
como se numa loja em mim comprasse
setenta e oito bonecos pela face
multiplicada por pérfidos danos.
Se o verdadeiro par de olhos insanos
me visse o rosto sem qualquer disfarce,
veria pelo ouvido a voz: “Ah, se
eu fosse em mim sem pênis e sem ânus!”
Mas como me sei igual a esse boneco
na vitrine a ser exposto pelo eco
do seu silêncio a falar verdadeiro:
— Brinco de ser, sabendo que não sou
senão o boneco que em mim enguiçou,
vivendo o nada como um mundo inteiro.

1076

Remando um barco nesse mar que espuma
apenas quando seca de vez, mo-
numentalizando o último sol numa
transformação com a qual me ensimesmo,
pela catarse de esperança alguma
e a me corroer indo em mim que vou a esmo,
no acovardado sol morrendo em bruma,
segue comigo um ser que é sempre o mesmo.
Nada impede que lhe impeçam o rumo
dos remos para um mar tão desumano
em águas sem praia e fogo sem fumo:
opero as quatro extrações do dente,
que as do alfabeto extraio de um ser insano,
interrogando se há um Deus na mente.

979

Embora próximo,
já distas milhas,
sabendo só
que nada avistas.
Mas se, já póstumo,
já cega a vista,
vires os sóis
de uma nova ilha,
levas contigo,
a estar mais rico
do que foste ontem,
o eterno hoje
que já te foge
pelo horizonte.

*Poema do livro “O BALDIO SOM DE DEUS”, Editora Contracapa, 2015.