Luiza Romão nasceu em 1992, em Ribeirão Preto, São Paulo. Poeta, atriz e slammer, foi vencedora do Prêmio Jabuti de Poesia com o livro “Também guardamos pedras aqui”, em 2021. Publicou também “Sangria” (Selo do Burro, 2017) e “Nadine” (Quelônio, 2022). Bacharela em Artes Cênicas e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, pesquisa as imbricações da palavra, performance e cinema, tendo participado de diversas mostras e festivais nacionais e internacionais de poesia falada.


ifigênia

a literatura ocidental começou com uma guerra
não a neblina das grandes cidades
faz tanto tempo que talvez ouço quase
a literatura ocidental começou com um massacre
isso você respira como quem veleja
o livro permanece aberto vê
é minha vez de contar a história
esse pacto só sobraram pedras
e rios sob o asfalto esse nevoeiro
agora chamam de santuário
o sêmen sobre os lábios seco
antes da primeira letra
antes do primeiro grifo
alguém já implorava misericórdia
estou pronta a canção
também as crianças precisam dormir

antíloco

não leve em hipótese alguma nunca
quando for deixe pra trás
o nome de seus filhos
o enxoval em ponto-cruz
canetas hidrográficas faber castell
tudo o que pode ser criptografado
votos de ano novo gatas siamesas
sua tia detestava jane austen?
seu pai torcia pro river?
jogue fora inclusive os miúdos
seu ódio pelo espelho

encias

ninguém sobrevive impune
eternamente covarde
eternamente sagaz
também meu pai ou seria meu avô
zarpou ao primeiro bombardeio
tenho medo de incêndios talvez por isso
confiro o gás três vezes antes de deitar
seus ombros suas coxas
essas palavras viris
já não sei como te chamar
um homem sem violência
nem de perto um touro
te apontaram o dedo você escapou
fizemos pior que eles

polixena

faz mais de três milênios ontem
era areia e eles carregavam flechas
era música e eles beberam demais
era túmulo e desvario
ser isca e esconder a dor
conheço essa cicatriz
se houvesse provas diferença alguma
você fez o que pôde
nem esse quarto nem nossos primos
nem o oficial que escaneava digitais
a vergonha vem a galope
pelo menos ganhamos a guerra
mas nem isso

atenas

tinha que ser uma de nós a mais loba
tâmaras suculentas nos bolsos
e um capacete de fazer inveja
tinha que ser uma de nós a mais eficiente
blefes precisos nas rodadas de poker
tinhas que ser uma de nós
necessariamente
então eles justificariam
também ela esteve presente
também ela assinou a jurisdição
também ela pediu reforços
e se regozijou
suas sentenças suas leis
satisfeita interrogação
você nos entregou a todas
e nem pediu recibo

tétis

eles não são pais ainda que tenham filhos
pois amam ser filhos já diria o cantor
todo homem precisa de uma mãe
uma mãe que lhe acalente o choro e as birras
uma mãe que lhe corte as unhas e esquente a canja
uma mãe que lhe faça boquetes e vá ao altar
uma mãe que lhe dê filhos saudáveis bem-educados
seu nariz sua boca seu jeitinho de resmungar
filhos exímios e super parecidos com papai
mas nunca seus

andrômaca

não conheci troia
ruínas a mais ruínas a menos
também guardamos pedras aqui
do outro lado do oceano
tudo o que aprendi foi nesse alfabeto moderno
eis o momento apoteótico minha obsessão
nossos despojos é troia
minhas amigas encurraladas
na mesa do chefe é troia
a jovem saco preto é troia
a jovem saco preto no rosto
festa de luxo é troia
as baratas roendo o cu
da guerrilheira comunista é troia
é troia meu companheiro baleado no rosto
é troia os corpos desovados no mangue
as lideranças perseguidas é troia
as vítimas de feminicídio é troia
os milicos os fascistas os tiranos
disparam todos contra troia
a filosofia o direito o ocidente
nascem da devastação de troia
agora você entende por que voltei?
não conheci troia mas a entrevejo esplêndida
nas carícias clandestinas durante os bombardeios
e gás de pimenta nas barricadas
nas clínicas de aborto nos abrigos
inusitados na desobediência
no canto sim no canto
eu não vou me entregar
você grita eu repito
através dos séculos
minha irmã
não há poemas para ti
nenhuma linha sobre cibele
onde perdemos o tino quando virou espetáculo
maldita literatura e seu panteão de vitórias
me abrace forte a explosão está próxima
ele há de vir

*Poemas do livro “Também guardamos pedras aqui”, Editora Nós, 2021.