Francesca Angiolillo nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, no ano de 1972. Poeta, jornalista, escritora e tradutora, estreou na literatura com os volumes de poesia Rua Lisboa e Etiópia, lançados simultaneamente. Etiópia, escrito a partir de uma viagem da autora em 2016, quando recebeu uma bolsa de criação literária do Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, foi ganhador do Prêmio Alphonsus de Guimaraens de 2018.

Perspectiva

Com um pouco de esforço é possível
achatar a visão
de uma perspectiva.
A janela cujos contornos
se afunilam no bar
em frente trazida adiante
para o marco da porta
de enrolar o bar
passa
a pertencer ao seu mesmo
plano – isso é tirar
da janela o tempo
que vai em andar
da entrada até ela.
Esse roubo de
minutos
é de compreensão fundamental
quando se trata de alisar
como a uma folha
de papel
um período maior
do passado.

Porto

De ti só guardo, porto,
a lembrança das ratazanas
na estação rodoviária.
Dizem que é uma obra bonita.

Eu não vi.

Mais vale alegre que seguro,
diz a canção, eu não senti
nem alegria nem segurança,
só sono e frio,
eu não vi teu rio ou
tuas casas antigas, não
chovia, nem havia lama como
no filme ruim que enche a tela.

E quando abri
meus olhos só havia pampa
e o ônibus dando voltas.

Nem sei como chegamos
aonde fomos dar –
outra cidade, outro rio,
outro porto.

No campo

O vermelho é a cor das coisas feitas
pelo homem:
o caminhão
o balde
o carrinho
de mão
o vermelho é a cor que cor
ta
o campo.

Uma vez pegamos o carro
e fomos ver
o campo
de maçãs.

O carro era cinza
o campo era plano,

de quando em quando havia
uma construção no meio
do nada todo igual
a ele mesmo.

O bebê dormia
nós não vimos nada
vermelho
mesmo
se as maçãs
estavam lá
em algum lugar.

De quando em quando havia
um trator
amarelo.

Telefunken

Após ouvir repetir
como todos os dias
que a cidade de Tóquio é uma
das maiores
e mais poluídas
do mundo
chega a hora de o leão
rugir na savana.
Por que não pode um leão
bramir
é uma das perguntas que ficam
sem resposta no programa
O reino animal.
Enquanto chitas cortam a planície e
outros grandes felinos atacam
manadas
de zebras de
cujas listras
até hoje
se desconhece o segredo
o bife chega
já cortado
ao prato.
Que alívio ser
humano e não viver
no reino animal
mas numa cidade grande.
Uma das coisas que na tevê
não se aprendia era
por exemplo
como lidar
com a lei do mais forte
no recinto escolar.
Ver a cada manhã o leão
rugir emoldurado
pela caixa marrom da
Telefunken
só ensinou mesmo que
não há espanto
em uma mariposa
ser devorada
por formigas.

Balada

Era outono quando ele nasceu
quando ele nasceu era outono
e seu pai já havia morrido
quando ele nasceu
sua mãe morreu
quando ele nasceu
sua mãe e seu pai estavam mortos
quando ele nasceu estava órfão
era dia dos mortos quando ele nasceu
e ele foi chamado de Ferdinando
era novembro então
quando ele nasceu
não um novembro qualquer
era novembro de um ano
e dezoito anos depois havia guerra
Ferdinando foi à guerra
Ferdinando foi ferido
Ferdinando foi levado no colo por um colega até a trincheira
o colega voltou
o colega buscou
outro ferido
e com ele no colo pisou numa mina
era dia de São Fernando
e ele nasceu
era dois de dezembro quando seu filho nasceu
era um mês depois do dia de mortos
quando seu filho nasceu
era um dia de outono, era um dia de vivos
lá fora nevava quando seu filho nasceu
Ferdinando brincava
nasci um mês antes de meu filho
nasci no dia de mortos
nasci no dia do santo
era dia de mortos
era um dia de outono
era novembro de um ano
era São Fernando
era um dia de outono
era dois de dezembro
era um dia de outono
era seis de janeiro
quando Antonio morreu
quando Antonio morreu
seu pai já havia morrido
quando Antonio morreu
era dia de reis
era dia de reis

*Poemas do livro “Etiópia”, Editora 7 Letras, 2017.