Abílio Manuel Guerra Junqueiro nasceu na vila de Freixo de Espada à Cinta, em Ligares, Portugal, no dia 15 de setembro de 1850. Poeta, político e jornalista, foi um dos mais populares nomes da poesia portuguesa, sendo um dos principais representantes da chamada “Escola Nova”. Poeta panfletário, a sua poesia ajudou a criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República. Entre 1911 e 1914, foi o embaixador de Portugal na Suíça, e, em 12 de fevereiro de 1920, foi agraciado com o grau de Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. Guerra Junqueiro faleceu no dia 07 de julho de 1923, em Lisboa, Portugal.
EVOLUÇÃO
Arde o corpo do sol, brotam feixes de luz:
O que é a luz?
Sol que morreu.
Dardeja a luz, dardeja e pulveriza a fraga:
Vai nesse pó, que há-de-ser terra,
A luz extinta.
Gerou a terra e a seara verde:
Hastes e folhas da seara verde
Comeram terra.
A seara é grada, o trigo é loiro:
Deu trigo loiro,
Morrendo ela.
O trigo é pão, é carne e é sangue:
Sangue vermelho, carne vermelha,
Trigo defunto.
Em carne e em sangue, eis o desejo:
Vive o desejo,
De carne morta.
Arde o desejo, eis o pecado:
Que são pecados?
Desejos mortos.
Queima o pecado o pecador:
Nasceu a dor, findou na dor
Pecado e morte.
A alma branca, iluminada,
Transfigurada pela dor,
Essa não vai à sepultura
Porque é já Deus na criatura,
Porque é o Espírito, é o Amor.
Na vida vã na terra sepulcral
Só o amor é infinito e só ele é imortal.
Morreu a luz, pulverizando a fraga,
Morreu a poeira, alimentando a seara;
Morreu a seara, que gerou o trigo;
Morreu o trigo, que deu vida à carne;
Morreu a carne, que nutriu o desejo;
Morreu desejo, que se fez pecado;
Morreu pecado, que floriu em dor;
Morreu a dor, pra nascer o Amor!
E só o Amor na vida sepulcral
É infinito e é imortal!
A MINHA FILHA
Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d’alvorada
Dentro dum botão de rosa!
E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila
Da estrela a sair da flor!
Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve…
E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar – de mãos postas!
De te abençoar – ajoelhado!
PARASITAS
No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda a gente deu esmola aos tais ciganos;
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz.
Que andais pelo universo há mil e tantos anos
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.
REGRESSO AO LAR
deste meu saudoso, carinhoso lar!…
Foi há vinte?… Há trinta?… Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!…
Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida…
Só achei enganos, decepções, pesar…
Oh, a ingénua alma tão desiludida!…
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!…
Trago de amargura o coração desfeito…
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!…
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!…
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar…
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!…
Minha velha ama, sou um pobrezinho…
Canta-me cantigas de fazer chorar!…
Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!…), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!…
Canta-me cantigas manso, muito manso…
tristes, muito tristes, como à noite o mar…
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!
CANÇÃO DE BATALHA
Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,
Que andaram contemplando a Lua branca e fria…
Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia
E já rasga o arado as terras fumegantes…
Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros d’arsenais;
E bater, é bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze, as lanças e os punhais.
Acendei a fornalha enorme — a Inspiração.
Dai-lhe lenha — A Verdade, a Justiça, o Direito —
E harmonia e pureza, e febre, e indignação;
E p’ra que a labareda irrompa, abri o peito
E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!
Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!
O poeta é como o Sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora…
Queimemo-nos a nós, iluminando a Terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!