Luis Olavo Fontes nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Poeta, escritor, tradutor e roteirista de cinema, Fez parte do grupo Nuvem Cigana, ao lado de poetas como Charles Peixoto e Ricardo Chacal. Fundou com Cacaso, em 1974, a coleção Vida de Artista, que lançou diversos poetas dos anos 70. É premiado como roteirista de cinema com Hans Staden no País dos Canibais, em parceria com Guy Van de Beuque. Faleceu em 2022, no Rio de Janeiro.
ODOR FÉTIDO
Havia um estranho odor
Pairando sobre a cidade.
Um aroma desagradável
Que a tudo impregnava.
O ar pesado fedia como
Um imenso traque cósmico
Que atravessava paredes sólidas
Dominando esse mundo ateu.
Por toda a parte se sentia
O odor nauseabundo
Do cadáver putrefato
. de Deus.
ENTREMENTES
Foi melhor assim, restos
de um ilusório edifício
desmoronando no asfalto
quente – como escombros
de uma paixão fervente
inexistente como um peso
sobre os ombros que sentes
e entrementes mentes
ainda que sejas crente
ainda que seja somente
. semente
de algo que nunca será.
PROMONTÓRIO II
então um dia o porquê se levanta
e tudo recomeça
nessa lassidão tingida de espanto
dar-se conta que o mundo é espesso
e a pele da moça nua deve
ser ásperas no avesso
que o gelo pode queimar como fogo
e que o fogo não é que o gelo fantasiado
compacto – como deixar fluir a água?
O belo é apenas o simulacro do terrível
tarde para a surpresa do beijo
ninguém quer saber dos seus gemidos
que o amor é uma química incompreensível
aos egoístas – àqueles marechais da indústria
àqueles que amam a poesia
OCEANO PRESO COM ELÁSTICO
Enrolo a paisagem como a uma cartolina
Onde rebentam musas descalças
O céu as árvores todos os mares
Guardo ali o rumor subterrâneo
Das fontes que não jorraram
O pescoço do cisne a turbina do anjo
Numa cartolina debaixo do braço
Impossível desfolhá-la
Abrir no corpo magro de um poema
A paisagem
Olhos da dama bêbada que me beija
Sem saber do que eu falo
ALGUMA POESIA
Poesia não é apenas linguagem
É algo que se respira fundo
Sagrado como um raio fúlgido.
Palavras muito bem arrumadas
Não são ainda boa poesia.
Poesia não pode ser fria nem quente.
Não pode ser racional e chata.
Não pode ser irracional e chata.
Um poema não é um teorema.
A poesia não quer provar nada.
Poesia apenas sente, pressente
Sutilmente anuncia – delicada alusão –
O beijo da borboleta azul
. no olho negro do cão.
*Poemas do livro “Entre-Mentes”, Editora Index, 2018.
