Mbate Pedro, nasceu em 1978, na cidade de Maputo, Moçambique. Poeta, médico, ativista cultural e editor, estreou na literatura em 2006 com “O Mel Amargo”, seguido de “Minaretes de Medos e Outros Poemas”, em 2009. O seu terceiro volume de poesia, “Debaixo do Silêncio que Arde”, recebeu o Prémio BCI de Melhor Livro Moçambicano em 2015. Já o livro de poesia Vácuos, publicado em Moçambique em 2017 e no Brasil pouco depois, foi indicado em 2018 para o importante prémio literário brasileiro “Oceanos”. Em 2019, Mbate Pedro fez parte da delegação de autores de língua portuguesa na Feira do Livro de Leipzig, na Alemanha. Fundou a editora Cavalo do Mar que publica literatura moçambicana recente de todos os géneros, bem como clássicos modernos da literatura africana e de língua portuguesa.
[algumas canções sobre a angústia]
vi um homem arrumar pedaços de
madeira na estante
lado a lado
os livros
vi o conservar nas prateleiras as bonecas da filha
dias depois o medo – com suas diabruras –
e a forma circular da angústia
depois
a insônia tomou conta do homem numa quarta-feira em que o
sono desceu pelos pés da cama e esvaiu-se no chão do quarto
mais tarde muito mais tarde
o mesmo homem esconjurou numa ferida aberta
o chão das pedras
Craveirinha
o poeta
esconjurou a escuridão e a agonia dos poemas
da prisão
Córtazar
o argentino
esconjurou-se ele próprio dos
seus cronópios
e precisarei dizer-te que vi ontem o rosto da minha morte
e que tem ele a beatitude de um beijo aberto e imortal?
*
o amor que devoto ao rosto do morto
como se contemplasse uma flor murcha
o buquê de lírios que sou forçado a levar ao
papel branco para que ele se abra – até que o
miolo do poema aluda à desordem
os abraços frios e pesados que recebo às terças-feiras
como se nascessem não dos ombros mas da pélvis
o desentorpecimento
o desespero que me é dado a
assistir nos rostos bafientos e medrosos
dos poetas novatos
e no entanto
as ruas estreitas que abrem os quartos para a elucubração
em outras palavras
o cheiro a fornicação que fica grudado semanas meses
nas vestes no asfalto circundante nos copos de cerveja
tudo isto é aterrador
vês?
*
invento o teu nome inteiro
de alto
a baixo
cada letra
cada sílaba como se fosse uma
onda o teu nome é oceano
eis aqui o amor
o amor da guerra cujas línguas de fogo são facas
invento a tua ausência o teu cheiro
quente como uma manga
a tua infinitude o teu silêncio
duro como uma pedra atirada
tu que tens o rosto redondo como os jardins
onde só cabe a nudez da alma
*
o espanto e o próprio rosto no cemitério
a reverberação dos mortos
tantos e tantos
mesmo em alguns ainda vivos
as vozes amarradas à tumba como quem de repente se vê preso
enquanto isso o silêncio abre os olhos coberto de
canções e os mortos desmaiam mercê de um longo cansaço
[sombras no vácuo]
e vens encher-me do que tens e tristemente
dócil te rejeito
arremessando aos rios a dança e o esquecimento
porque as margens dos rios são falsas
porque os passos de dança são infinitamente esquivos
é obscuro e fundo o poema negro
como a cor da renúncia
oh como é profunda a alma da pedra lançada ao rio e das
. coisas resignadas
as muralhas que erguemos
no interior das solidões
ofereço-me a mim próprio envolto em névoa
e crescem-me musgos nos armários da memória
por isso soletro para mim próprio o poema do estremecimento
. e não o ouço
*Poemas do livro “Vácuo”, Editora Cepe, 2019.