Pedro de Magalhães Mexia Bigotte Chorão, nasceu em Lisboa, Portugal, a 5 de dezembro de 1972. Poeta, cronista e crítico literário, é filho do escritor João Bigotte Chorão. Desde 2016 exerce funções de consultor para a cultura da Casa Civil do Presidente da República. É membro do Conselho Editorial da Imprensa Nacional – Casa da Moeda e, desde 2019, atua como co-director (com Gustavo Pacheco) da Granta em língua portuguesa.

Publicou os livros de poesia Duplo Império (1999), Em Memória (2000), Avalanche (2001), Eliot e Outras Observações (2003), Vida Oculta (2004), Senhor Fantasma (2007), Menos por Menos – Poemas Escolhidos (2011), Uma Vez Que Tudo se Perdeu (2015), Poemas Escolhidos (2018) e Verdadeira Herança (2021). No Brasil saiu a antologia Contratempo (2016). Além disso, coordena a coleção de poesia das Edições Tinta-da-china, na qual foram publicados poetas como Alejandra Pizarnik, Fabiano Calixto, Eucanaã FerrazCarlos Drummond de Andrade. É desde 2019 co-director (com Gustavo Pacheco) da Granta em língua portuguesa.

VERMELHOS

Agora a tecnologia acaba
com os olhos vermelhos
que assombram fotografias.
Corretor equívoco:
não era a máquina
que os fazia vermelhos.

REVISOR REVISITADO

Que triste, obliterar.
Era isso porém que fazia: obliterava.
Na sua cadeirinha de zeloso símio,
funcionário da decência lisboeta.
Casado, tributável, de bigode, lhe fora dada
tarefa digna de palavra nova: obliterava.

E nenhum de nós, ainda nem adolescentes,
possuía verbo tão único.
De azul estatal e chapéu desusado
era o revisor. Com bonomia ou aborrecimento
vigiava todos e encolhia as pernas
para acomodar as compras de uma matrona.

Revia e obliterava,
Obliterava e revia.
Como eu esta tarde de poemas.

O PEQUENO MESTRE

Era muito novo.
Os mais velhos nem me viam.
Mas entre os mais novos
possuía uma espécie de aura.
Gostava de os conduzir.
Gostavam da condição de conduzidos.
E logo por mim, em mim,
Não sabiam quão triste teatro.

PRIMEIRA IMAGEM

A primeira imagem: dois anos,
a caminho de um casamento.
Numa velha pick-up, vaso improvável,
uma quase ronda de presépio.
A caminho de um casamento,
o negro ritual. Na família entre
a família e para a família.

A primeira imagem.
Realmente minha? Não me posso
lembrar, garantem, de memória
tão precoce. Mais importa
essa circunstância: a família.

Isso que existe (sociologia,
demografia, biografia). Que não existe.
Um plural em declinação minha,
instável, para que me sirva. Um problema
desfeito em poemário.

A primeira imagem: dois anos, a caminho
de um casamento. Família,
primeira imagem, não serás a última.

OS MEUS DEMÔNIOS

Os meus demônios
tratam-me pelo nome.
Os meus demônios
são legião e não desertam.
Os meus demônios
obedecem a todas as ordens
e a nenhuma vontade.
Os meus demônios
começaram por ser meus
por afinidade e agora
são parentes de sangue.
Os meus demônios
é que escrevem os poemas.

PANDORA

No fundo
da caixa, na fastasmática
sobra, pobre
mitologia da desolação,
fica, ficou,
a segunda virtude teologal
(anacronismo),
mas está mal contado, não
foi assim:
liberta, não saltou com
um boneco
nem esvoaçou tal pomba
(pagã)
ficou simplesmente detrito
fundo
teimoso, aderente, em vez
de maldição
apenas um desafio de detergentes
quando
os vindouros que limpem
a caixa
nem saibam o que é isso
Pandora.

UM PEIXE FORA DE ÁGUA

Um peixe fora de água
em toda a água.
Salvo a turva, pluviosa, estagnada.
Um peixe fora dessa sua condição.
Bicho, não mais.
Suja para que se toque
sem nojo. Animal frio.
Um peixe quase peixe fora de toda
a água, fora de salvação
e conceito, sempre alheio,
bizarro, incompatível.
Dentro e fora de água igualmente
peixe, igualmente nada,
acostumado à inexistência,
alheio à luz e ao anzol.

INQUEBRÁVEL

Dez anos? Não me peçam
memórias datadas.
Os primeiros óculos.
O mundo agora
com uma armação,
um vidro, uma distância.

Os óculos dividiam
quem os não usava
dos outros, os vidrinhos,
putos com um apêndice
tosco e visível,
putos com defeito,
com um acessório,
um gozo, a menor
traulitada os desfazia.

As minhas lentes de plástico
(assim me disseram)
eram <<inquebráveis>>.
Na época, ainda imaginava
matérias inquebráveis.
Como se eu, defeituoso
e afásico, fosse inquebrável.
Assim fiz a demonstração
aos basbaques e às feras,
com o dedo médio
contra o plástico
com mais força ainda,
inquebrável que era.

Aos pequenos golpes
uma lente
treme na armação
e num piparote
saltita no soalho encerado.
A troça desaba.
Como se tivesse mentindo
e fossem frágeis
lentes vulgares
que se partem como se parte
o vulgar vidro.

Só anos mais tarde soube:
o plástico inquebrável
apenas solto,
inquebrável no chão,
fora dos óculos.
Ciência tardia.
Os meus inquebráveis óculos
face à multidão
quebrados como os outros.
Nada é inquebrável
se vacilamos.
O mal acidental
fica catástrofe.
A filosofia soçobra.
Vamos, pela vida fora,
amarfanhados
num equívoco.

*Poemas do livro “Vida Oculta”, Editora Relógio D’água, 2004.