Tjawangwa Dema nasceu em Botsuana, em 1981. É poeta, produtora cultural e educadora. Ficou conhecida mundialmente quando discursou na Assembleia da ONU para Assentamentos Humanos, em 2023. Autora de “A costureira descuidada”, obra vencedora do prêmio Sillerman de 2019, para poetas africanos estreantes, também foi finalista dos prêmios da Associação de Estudos Africanos Aidoo-Snyder e do Luschei, e indicado como o livro africano de destaque do Brittle Paper de 2022. Dema participou de leituras e ministrou oficinas em mais de vinte países, entre eles o Brasil. Ela atualmente administra o “Arts Consult” de Botsuana e coordena em diversos festivais literários internacionais e comitês editoriais consultivos.
Ellen West
quem quer ser gorda
eu não
nem a moça girando pacientemente
cuja cintura desaparece
sempre que ela olha pro lado
ou se inclina sobre o vaso
certeza de que ela faz isso
quando não tem ninguém olhando
ninguém pode comer e ficar igual
eu tentei
caí de um cavalo
beijei uma criança com escarlatina
uma mulher morreu de frio
eu arrisquei depois de um banho no inverno
e ainda estou aqui pesando pecados
ganhando e não perdendo carne
a vizinha teve teve uma criança
e voltou a emagrecer
vejo o peso do olhar dos homens nela
juro que estou comendo de novo
mas a comida cai como uma pedra
há sempre uma refeição no horizonte
um almoço que se pula habitualmente logo vira janta
e quando acordamos lá está a comida de novo
não sou uma pessoa só
meu corpo pede mais e mais comida
e depois recusa
pele pura eu digo à médica
tentei comer
verduras
só que pouco e sim
meu marido sabe
sobre os laxantes
e que eu não sangro há anos
o custo de tantos comprimidos
mas eu quero um bebê então
estou comendo de novo embora comer
seja morrer devagar
por que ninguém mais vê isso
aos dez andava pelo mundo como uma criança
aos trinta e três meu corpo é uma cena de carnificina
parece que nada
vai parar todas essa comilança
nem mesmo o peso do desejo
de ser magra
Maternar
Não há nada a dizer a não ser
que ela nem canta mais,
sentada no chão de pernas cruzadas,
um rasgo em cada meia,
correndo seus braços de cima a baixo,
um cigarro trêmulo quase imóvel
entre dedos finos e cilíndricos
e aquele rosto, meu deus!,
o rosto também, tudo ali mas ausente:
o sorriso, o brilho, tudo em tons de cinza
e a chuva cai no chapéu de feltro dobrado pelo próprio peso.
Impossível imaginar esse lugar
ou como ela pôde desistir de toda a sua pose
por meninos do passado
e as malditas promessas que faziam
e como pode ser essa a resposta?
Não sei, não sei
se em algum lugar bem longe daqui
um menino com um cinzel e um martelo
quebra suavemente os ladrilhos
de alguma casa que ele quis construir
para alguém como ela.
Vermelho
Na primeira vez,
não tão vermelho, talvez marrom,
uma flor enferrujada, a cor incipiente
atravessando o lençol matinal.
Conhecendo a mãe,
nada de esportes agora,
nada de pular cercas com os meninos.
O peito inchando flores miúdas como nós nos dedos,
a cintura estreita
num ou noutro lugar se alargou.
Seu próprio corpo te trai,
rijo enquanto dói uma dor crua,
encosta e colapsa, congela e coalha
um rosto todo bochechas.
Um florescer constante,
uma floresta de árvores retorcidas do sul,
uma mudança pontual,
gosto de ferrugem
e ferro velho no ar,
a boca, uma coisa estranha.
Diz uma coisa e se abre para deixar outra entrar.
Pesqueiro
Não consegui me forçar a espetar o camarão
mantido vivo num balde só com esse propósito,
então meu irmão faz a costura do gancho na carne.
Por horas eu balanço com a linha,
algo parecido com ritmo,
e ainda assim só baiacus e iscas mordidas.
Há cinquenta anos este pesqueiro está aqui
flutuando sobre estacas fincadas no mar,
suportando furacões e tempestades,
o golfo lambendo furiosamente aos seus pés.
Estou sentada no deque de madeira,
pés descalços balançam acima do mar gelado,
nada além do nosso barco branco que bate
como um vizinho indeciso à noite.
Estou feliz com a minha sorte,
embora não tenha apanhado nada,
salvo o desejo de lançar a vara por horas a fio
procurando algo com aquilo que eu tenho.
Mamãe
Se eu olhar para trás posso ver você
deitada no chão do trem.
Você nunca deve ter sido uma andarilha
dormindo passando o tempo pastando
ou ordenhando ou arrancando talos de milho
de um solo insolente.
Seu único vestido bom fica com a estampa roçando
sua pele adolescente e o chão empoeirado,
o balanço constate do trem
um estranho acalanto para aqueles anos
em que você dormia a noite toda
e acordava antes
de chegar o primeiro dia na escola.
Aquela vez que não encontrou o sapato
embora tenha olhado em todo canto
e procurou e procurou
e saiu do trem com um sapato só.
E o tio para o qual você escreveu que não acreditava
em pais que mandam as filhas
sem meios de sobreviver
para o internato.
Não fosse por aquela menina
que deu a você as sandálias dela
para calçar na aula
ou as freiras cujas regras
exigiam todas vestidas de azul,
você teria sido mãe de quem?
*Poemas do livro “A Costureira Descuidada”, Círculo de Poemas, 2024.
Tradução de Floresta