Ana Luísa Amaral nasceu em Lisboa, Portugal, a 5 de abril de 1956. Poeta, professora de cultura inglesa e tradutora, tinha um doutoramento sobre a poesia de Emily Dickinson e áreas de investigações sobre Poéticas Comparadas, Estudos Feministas e Estudos Queer. Tinha um programa de rádio, com Luís Caetano, na Antena 2, chamado “O Som que os Versos Fazem ao Abrir”. Recebeu diversas distinções, como a Medalha de Ouro da Câmara Municipal de Matosinhos e a Medalha de Ouro da Câmara Municipal do Porto, por serviços à Literatura, além de diversos prêmios, entre os quais o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana. Ana Luísa Amaral faleceu no dia 5 de agosto de 2022, aos 66 anos, na cidade do Porto, Portugal.
PASSADO
Ah velha sebenta
em que escrevia as minhas composições de Francês
“Mes Vacances”: gostei muito das férias
je suis allée à la plage (com dois ee,
o verbo être pede concordância), j’ai beaucoup
nagé e depois terminava com o sol a pôr-se
no mar e ia ver galáxias ao dicionário
As correções a vermelho e o Passé Simple,
escrever cem vezes nous fûmes vou fûtes ils fûrent
as tardes de sol
e Madame Denise que dizia Toi ma petite
com ar sangrento e a cara zangada a fazer-se
vermelha (tenho glóbulos a mais, faites attention)
e o olhar que desmentia tudo
em ternura remplit
E as regras decoradas e as terminações
verbais a i s, a i s, a i t,
a hora de estudo extra sol de fim de tarde
a filtrar-se pelas carteiras,
a freira a vigiar distraída em salmos
eu a sonhar de livro aberto
once upon a time where was a little boy
e as equações de terceiro grau a uma
incógnita
ah tardes claras em que era bom
ser boa, não era o santinho nem o rebuçado
era a palavra doce a afagar-me por dentro,
as batas todas brancas salpicadas de gouache
colorindo e o cinto azul que eu trazia sempre largo
assim a cair de lado à espadachim
As escadas de madeira rangentes
ao compasso dos passos, sentidas ainda
à distância de vinte anos,
todas nós em submissa fila a responder à chamada,
“Presente” parecia-me então lógico e certo
como assistir à oração na capela e ler as Epístolas
(De São Paulo aos Coríntios:
Naquele tempo…),
tem uma voz bonita e lê tão bem, e depois
mandavam-me apertar o cinto para ficar
mais composta em cima do banquinho,
à direita do padre
E o fascínio das confissões,
as vozes sussurradas na fina teia de madeira
castanha a esconder uma falta,
o cheiro do chão encerado e da cera das velas
e quando deixei de acreditar em pecados
e comecei a achar que as palavras não prestam
e que era inútil
inútil a teia de madeira
Ah noites de insônia à distância de vinte anos,
Once upon a time there was a little boy
and he went up on a journey
there was a little girl, une petite fille
e o Passé Simple, como parecia simples o passado
Au clair de la lune
mon ami Pierrot
Prête-moi ta plume
pour écrire un mot
Escrever uma palavra
uma só
ao luar
a pedir concordância como uma carícia
Elles sont parties,
les mouettes
O EXCESSO MAIS PERFEITO
Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.
Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.
Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contrarreforma do silêncio.
Música, música, música a preencher lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifônico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.
Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.
Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contrarreforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada –
*Poemas do livro “VERSschmuggle – Contrabando de VERSOS”, Editora 34, 2009.
TESTAMENTO
Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos
Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas
Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.