Ndalu de Almeida, mais conhecido como Ondjaki, nasceu em Luanda, Angola, no dia 5 de julho de 1977. Com grandes influências da literatura brasileira, tais como Manoel de Barros, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Adélia Prado, sua trajetória artística também perpassa pelo teatro e pela pintura. É um dos poetas angolanos mais premiados de sua geração, tendo obras traduzidas em diversos idiomas. Venceu o Prêmio Jabuti de 2010, na categoria “Juvenil”, e o Prêmio José Saramago, em 2013, por seu romance “Os transparentes”.

 

INTIMAR O POEMA A SER RAIZ

era um poema lateral aos sentidos.
ganhava formato ébrio
ao nem ser escrito.
longe dos pensamentos
imitava uma pedra
[aí as palavras drummondeavam].
longe das lógicas
– com tendência vagabunda –
o poema driblava lados avessos
de noites
e animais
[aqui sílabas manoelizam, barrentas]
mas uma estrela nunca brilha
tão solitária;
encarece-se também de luuandinar,
miar à couto,
esvair-se para guimarães…
era um poema carente de afetar-se
a ramos gracilianos.
assim alcançava
o estatuto
de raiz.
cheirando, emitia brilhos tímidos
– fosse um pirilampo.

O INÍCIO

Segui a lesma, a baba dela parecia um rio de infância
perdido no tempo. escorreguei no tempo.
nesse rio havia um jacaré. a fileira enorme de dentes
lembrou-me uma pequena aldeia cheia de cubatas [talvez a
aldeia de ynari]:
adormeci na aldeia.
ouvi um barulho – era a lesma a sorrir.
o sorriso faz-me lembrar um velho muito velho que
escrevia poemas. os poemas eram restos de lixo que ele
colecionava no quarto ou no coração das mãos.
abracei o velho. quase que eu esborrachava a lesma.

CORPO

em cima do que foi olhado
pela poesia

estendo o meu luando

empresto o meu corpo ao chão
e adormeço.

PÉTALAS

aprecio muito a redondez do mundo,
flores e pétalas
apontadas numa direção amarela

verdades doces como mangas
[gosto de mangas com fio – dão sorrisos mais amarelos]

um dia veio o vento e as pétalas esvoaçaram

ficou triste a flor
ficaram livres as pétalas.

À NOITE SER [MATERIAIS PARA…]

dedos quietos que crescem
pela nua
brincadeiras como o amor
pêndulo solto de sonhos
lógicas sacudidas
olhar de só-assim
modos de chegar como sementes
manobras de artesão contra o ego
desafio do “eu”
nudez de pele
de mãos
e (sob os teus olhos)
invenção de um sólido espanador de tristezas

CONSTRUÇÃO

construção da casa [e do interior da casa]
construção de uma fogueira [e do fogo, e da chama, e das
cinzas]
construção de uma pessoa [do embrião aos livros]
construção do amor
construção da sensibilidade [desde os poros até à música]
construção de uma ideia [passando pelo que o outro disse]
construção do poema [e do sentir do poema]

[há qualquer coisa de “des” na palavra construção]

desconstrução do preconceito
desconstrução da miséria
desconstrução do medo
desconstrução da rigidez
desconstrução do inchaço do ego
desconstrução simples [como exercício]
desconstrução do poema [para um renascer dele]

construção é uma palavra
que causa suor
ao ser pronunciada.

penso que esse seja um suor bonito.

*Poemas do livro “Materiais para confecção de um espanador de tristeza”, Editora Caminho, 2009.