Celso Alencar nasceu em Belém do Pará, no dia a 3 de agosto de 1949. Poeta, tradutor e declamador, vive em São Paulo desde 1972. Ex-diretor da União Brasileira dos Escritores (gestão 1990/92 e 1992/94), é uma figura muito reconhecido entre os grandes talentos da geração de 70, como Cláudio Willer e Jorge Mautner. Apresentou-se em diversos países, como Inglaterra, França e Portugal.  É tradutor da poesia do nicaragüense Rubén Darío e intérprete da poesia de Mao Tse Tung.


Agora, gritemos

Agora, antes de darmos o grito definitivo
é preciso fazer um breve exercício de voz.
Gritemos baixinho, bem baixinho, como um leve sopro.
E se ouvirmos o eco, gritemos forte.
Ouçamos, sem a necessidade
de andar nas margens do precipício.
Ouçamos o eco
e gritemos forte.

O inimigo diferente

Era diferente.
Tínhamos um inimigo.
Sabíamos quem era o inimigo.
Agora é diferente.
Não sabemos quem é o inimigo.
E ele é muito.
E vive conosco.
Juntos, sentámo-nos em volta
da mesma mesa.
As árvores ainda nos protegem
com suas sombras de verão.
Elas são velhas.
Mais velhas que todos nós reunidos
mas ainda nos protegem.

Há uma sombra sobre a flor

Há uma flor morrendo.
No quintal uma enorme sombra
dorme sobre as árvores frutíferas.
Um estranho canto de pássaros noturnos
mostra a noite circundando a casa.
Mas não há noite. O dia ainda está no meio.
Há uma flor morrendo
e lhe digo: não morra meu amor.
Vou à cozinha buscar o elixir da vida.
O líquido miraculoso da mercearia do japonês.
Tratei também o pão de batata
e o suco de maçã integral.
A sombra está indo embora.
Há uma flor morrendo.

Havia pavor em mim

Vozes de ovelhas desditosas
falavam-me dos milhões de cus de galinhas

Homens devoraram os olhos
de outros homens
com facas de assassinos

Era dia, era à tarde
e havia pavor em mim

Loucas de bicos pretos
queimavam seus filhotes
em troca do supremo dom divino

Havia restos de laranjas
havia cheiro de infância
flores, incensórios
corações se cortando
e pavor em mim.

Todos nós éramos hipócritas

Estávamos todos ali.
Atentos a nós mesmos
às nossas palavras.
Atentos a páginas de livros envelhecidos.
Fora do prédio, surgida do céu,
enfurecida estava a puta na Rua.
Loira, meia idade, olhos alemães
voz embriagada e roupas de mulher viúva.
Já se passara o amanhecer
mas ainda estava manhã.
De sua boca, adjetivos de satã
eram dirigidos a um homem que
ameaçava-lhe bater com uma perna de cadeira.
Estávamos todos ali, atentos, envidrados.
Seus gritos confundiam-se com as buzinas dos automóveis.
Afora os olhos do povo nas calçadas,
nossos olhos pertenciam agora àquela imagem.
Não mais ouvíamos as suas palavras.
Víamos sim os seus gestos
a sua dança, os passos da loucura.
E foi então que
sob o sol opaco do dia
Como mágica
como o pano preto da máquina de fotografia
ergueu a curta saia
e com mãos de ódio, com profundo ódio,
esfregou a fulgurante buceta.
Havia rancor
em seus gestos e palavras.
Estávamos todos ali
bêbados dentro de um aquário
observando a vida.
Não houve tempo para
o homem consumar seu crime.
Surgidos do inferno
dois homens montados
em cavalos pretos
arrebataram-nos pelos pescoço
como se apanhassem
cachorros ou gatos novos
arrastando-os pela Rua.
Éramos hipócritas sim antes
de voltarmos para o nosso inferno.

Da ignorância do homem

Para não morrer
devemos nos osgasmar.
Ainda que propalem ser pecado
orgasmemo-nos.
Tudo aquilo que leva ao orgasmo
vem do céu, vem de Deus.
O homem não foi instruído por Deus
para criar os dogmas, os tabus,
as proibições, os pecados.
Isso vem do próprio homem.
Vem da sua própria ignorância.
Os símbolos de Deus são
a bondade, a generosidade,
o amor pelo seu semelhante.
O egoísmo, a mesquinhez, a ganância,
isso vem do próprio homem.
Portanto, orgasmemo-nos.

*Poemas do livro “Desnudo”, Editora Quaisquer, 2018.