Alberto Pucheu nasceu no Rio de Janeiro, a 25 de fevereiro de 1966. Poeta, Ensaísta, Professor de Teoria Literária e Cientista da Faperj e pesquisador do CNPq, é um dos mais premiados autores da atualidade. Seu livro de poemas “A fronteira desguarnecida” foi vencedor do Programa de Bolsas para Escritores Brasileiros, da Fundação Biblioteca Nacional, e o de ensaios “Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e seus entornos interventivos” recebeu o Prêmio Mário de Andrade de Ensaio Literário, da Fundação Biblioteca Nacional.

DA CONDIÇÃO PRIMEIRA

Com a licença de todos os santos
e a de meu pai Oxalá
pego nesta encruzilhada o prato de comida
A fome é grande
e é pela minha boca que comem os deuses

DA CONDIÇÃO PRIMEIRA, Nº 2

A máquina escarpou cerúleo
prensando Ares contra o asfalto sufocante
do trânsito
Ônibus sirenam fumaças
atiçam a engrenagem do peito armado
de ferros e estampidos
Na esquina da conde de irajá
um caminhão de mudanças
estupra a kombi branca de frete contra o poste
O sangue atira pela janela
o corpo rude de um homem
É de sua testa que jorra a voz prolixa
para refeição do mais faminto dos deuses

PÓS-ESCRITOS

1.   Fim de um livro. Pesa no papel
.     a palavra esquecida.

2.   Nossa contínua condição
.     de indigência se nos defronta.

3.   Escrever desconhece redenção.

4.   Nem perguntas. Nem respostas.
.     A suspensão bate o pronto
,     do pensamento.

5.   Esmurrar a bruta
.     ausência até que se abra a ferida
.     de uma epífrase.

6.   No duro combate, rixa
.     e comunhão sinonimizam.

7.   A miragem da frase comida
.     por seu vão.

8. …e a fronteira esvaecendo-se,
.    desguarnecida…

9.   Condizendo aos arranjos, também
.      o esfacelamento das letras.

10.  A era da rebelião
.      das palavras. E a do
.      inefável

11.   A prisão de uma frase
.      mantém a porta aberta a quem souber
.      encontrá-la.

11ª.   Dá-se o passo. Atravessa-se
.        a grade: escutar o silêncio
.        é soletrá-lo.

12.   Pertinência: quando
.       uma exceção
.       fica plena de voluntariedade.

A 1600 METROS

A paisagem deposita uma árvore no silêncio
de meu corpo, entre a pleura e o baço,
um gavião voa pelo intestino que se alarga
à sua passagem, uma cabra rumina meu coração
vibrante como capim ao vento, nuvens
se apropriam de meu cérebro, vagam
em minha cabeça, intrometem-se pelo tórax,
pela pélvis, pelos pés, pelo ar, um peixe
escorrega com a gástrula, aproveitando espaços. Que alívio
me abrir! No limite instransponível em que me encontro,
não há mais para onde ir. Não há caminho para
voltar. Descanso, enfim, no exílio inexistente da caverna.

DE PRÊMIOS, ARMADILHAS E OUTRAS COISAS, Nº 2

E não adianta pensar em se entregar ainda mais à vida, largar o
emprego medonho, realizar o antigo sonho
de ser o que se acredita ser,
achando resolvido todo e qualquer problema. Não,
não adianta: não somos a solução embolsada,
mas isso de que jamais escapamos
na busca do impossível horizonte. Somos a vida
estendida entre o chão e o abismo,
as variações aleatórias que ela mesma, a vida,
nos distribui em prêmios e armadilhas, a velocidade com a qual,
aturdidos, nunca nos acostumamos.
Não, não adianta pensar em se entregar ainda mais à vida
supondo baixo o preço a ser pago,
mas de receber o que nos é a nossa revelia.
Desconhecemos a salvação. Acabamos
nos lançando, sim, a uma intensidade maior,
e, desprotegidos, sob o risco constante
de você só tornará as coisas piores,
sob o risco constante do malogro,
não vivemos da melhor maneira: mas da maneira possível.

POEMAS PARA CARREGAR NO BOLSO

.                              Poema Para Carregar no Bolso

Entreguei o corpo aos abalos da cidade.
Mastigo seus vergalhões, o sabor perdido
do terrão ancestral. Independe de mim
a oscilação da Bolsa,, a noite de carros,
as palavras derivadas em poemas, o exagero
luminoso por todos os bairros, o abalroamento
na esquina e na estrada. Estou à margem
do resultado de todas as coisas. Violino
desacompanhado, não tenho para a vida
uma pauta de Bach. Inventar-me-ei
nessas linhas. Ou não cumprirei arrojos
necessários. Sigo, com o nome de meu avô antes de seu
avô nascer, com a mesma sensação ubíqua do momento
em que fui concebido, com pensamentos de quelônio
submerso em mares distantes… Os pés descalços, a sola
engrossada por caminhos andarilhos, o dorso aderindo
ao jeito do asfalto e das calçadas, o corpo manuseado
pela rebelião sísmica e descontínua da cidade.

“Poemas do livro “A Fronteira Desguarnecida – Poesia Reunida (1993-2007)”, Azougue editorial, 2007.