Cristina Peri Rossi nasceu em Montevidéu, Uruguai, a 12 de novembro de 1941. Poeta, romancista, contista, ensaísta e tradutora, é a única mulher incluída dentro do chamado “boom latino-americano”, movimento de destaque internacional das décadas de 60 e 70, que projetou nomes como Gabriel García Marquez, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Reconhecida pelo seu ativismo político precisou se exilar em Barcelona, Espanha, em 1972, durante o iminente Golpe de Estado uruguaio. Peri Rossi ganhou o Prêmio Miguel de Cervantes em 2021.

A PAIXÃO

Saímos do amor
como de um acidente aéreo
Tínhamos perdido a roupa
os documentos
a mim me faltava um dente
a você a noção do tempo
Era um ano longo como um século
ou um século curto como um dia?
Pelos móveis
pela casa
restos partidos:
copos fotos livros desfolhados
Éramos os sobreviventes
de um desmoronamento
de um vulcão
das águas arrebatadas
E nos despedimos com a vaga sensação
de ter sobrevivido
embora não soubéssemos para quê.

ESTADO DE SÍTIO

Aquela vez
– estado de sítio na cidade
sirenes ambulâncias tanques verdes
como pesados lagartos
e o medo crescendo como erva daninha –

acreditamos que seria a última vez.

Fizemos amor com a intensidade da agonia

amar antes de morrer
amar até morrer

fizemos amor com o desespero
da partida

e teus gemidos eram a dor do orgasmo
teu pranto o pranto da perda na união.

Os soldados não chegaram,
passaram ao largo ou
foram para outra casa.

Nunca mais houve uma noite como aquela

compartilhar o medo
o terror do pânico
une mais do que compartilhar a felicidade
a bem-aventurança.

Desde então,
busco a intensidade em outra parte
e não a encontro nas drogas
nem no álcool
nem nas orgias

a intensidade está no meu interior
colada à minha fantasia.

VELHICE II

Antes de morrer
uma última tortura
desdobra-se
para contemplar nosso passado
com inédita lucidez
sem sentimentos
talvez só um pouco de ternura
pela criança que fui
solitária ingênua e sonhadora
pela adolescente que fui
solitária ingênua e sonhadora
e observar com equanimidade
os erros próprios e alheios
para descobrir que tampouco eles
importam agora.
Nada nunca
neste mundo
pode desfazer o grande mal-entendido
apesar do qual não nos suicidamos
porque já estamos velhos demais pra isso
ou por temor de falhar no intento
e que esse seja ao fim e ao cabo
o último erro de nossa vida.

A MUSA REBELDE

Hoje a musa amanheceu reivindicativa
me falou não sei o quê sobre sua verdadeira personalidade
sobre ser ela mesma
sobre não querer ser outra.
A musa está cansada
quatro anos de palco
abalaram sua resistência.
Basta de fantasias
quer ser autêntica.
Abro a janela dos sonhos
para que ela vá embora
pressinto que chegou o momento
de dizer adeus.
Ela sairá pela janela
e no chão
como um vestido puído
já sem uso
a musa será apenas vazio
apenas cinzas.
O quarto ficará muito solitário
e eu não terei um corpo
quer vestir
nem um poema que escrever.

DESPEDIDA DA MUSA

Ontem expulsei a musa
por mau comportamento:
despojou-se dos véus
dos vestidos das palavras
dos versos das rendas
e quis ser ela mesma
recuperar sua identidade
falou de seus direitos femininos
e reclamou sua liberdade.

Pobre musa sem poeta
pobre corpo sem investidura
pobre mulher sem quem a sonhe.

Sei o que acontece
a musa teve inveja do poeta
já não quer ser musa
agora escreve versos.

O PARTO

Do fundo do ventre,
como uma montanha,
a obscura força do desejo.
O desejo, obscuro como uma semente.
A semente fechada e muda
como uma ostra.
Os lábios da ostra
lentamente se abrindo,
como a vulva.
A vulva, úmida e violeta,
às vezes, fosforescente.
Babel, voltada para dentro,
como uma semente. Guardada
como uma ostra. Ensimesmando-se,
como o caracol encolhido.
Babel torre, Babel casa escondida.
.               “É longo esconder-se por nove meses”, diz Babel,
.                 inchada.
A palavra, apontando para fora.
A palavra, sobressaindo do vestido.
A palavra, empurrando seu broto,
sua alegria, sua maldição.

.    Babel pelas ruas como uma virgem,
como se nada escondesse. Babel bailando em bable.
Babel vestida.

.       E de pronto, subitamente, o grito.
Descendo pelas pernas abertas, o grito.
Desfundando-se nos lençóis, o grito.
Liquefazendo-se nos quadris duros como âncoras,
Forçando-se a sair, o grito.
Brutal, tresnoitado, fundo, gutural,
.                                                            onomatopaico,
.                                                                            Babel bárbara
negro, desentranhado,
.                                     o grito: partido em dois,
feito de sangue,
.                         voz da víscera,
palavra sem lugar no dicionário.

*Poemas do livro “Nossa vingança é o amor”, Editora 34, 2024.
Tradução de