Seamus Heaney nasceu a 13 de abril de 1939, em Londonderry, Irlanda do Norte. Prêmio Nobel de Literatura de 1995,  é considerado um dos principais poetas irlandeses de todos os tempos, junto a nomes como William Butler Yeats, Bernard Shaw e Samuel Beckett. Tinha como características marcantes em seus versos a força de seu lirismo, a defesa de autonomia da Irlanda do Norte e a presença de motivos épicos e gregos em suas obras. Seamus Heaney faleceu no dia 30 de agosto de 2013, em Dublin, na Irlanda.


O LAÇO DE PALHA

Enquanto trançava o laço de palha
Você o suave silêncio em você implicava
Em trigo que não enferruja
Mas brilha ao se entesar a cada torcedura
Em coroa que à compreensão não falha,
Um descartável nó-de-amor de palha.

Mãos que avelharam com bordões de freixo e cana,
Lidaram esporas numa vida de galos de briga
Atentos a seu dom e trabalharam com grande intento
Até os dedos moverem-se sonambulentos:
Falo e toco-o como braile,
Colhendo o não-dito no palpável.

E se perscruto a laçada áurea
Vejo-nos andar entre os clivos da via férrea
Em tarde de mosquitos e capim agreste,
Fumo azul reto, cama velha e arado em sebes,
Aviso de leilão na parede de um paiol –
Você com laço de palha na lapeia,

Eu com caniço de pescar, já com a aspiração
Do enlevo dessas tardes, enquanto o bastão,
Golpeando as pontas das ervas e moitas,
Bate atemporal, e bate, mas afoita
Nada: essa comuna de então
É língua-presa em palha presa por sua mão.

O fim da arte é a paz
Seria o mote deste frágil artefato tenaz
Quem com alfinete prendi no aparador de casa –
Como armadilha desarmada
Movida há pouco pelo espírito do milho
Porém polida em sua passagem, e ainda aquecida.

OS TEXUGOS

Quando o texugo tremeluziu
outro jardim adentro
você parou, à meia-luz de uísque,
sentido que perturbara
algum suave regresso.

O morto matado,
você pensou.
Mas não poderia ter sido
algum violento garoto em pedaços
farejando o que foi extraviado
entre o berço e a explosão,
noites quando as janelas ficavam abertas
e o composto enfumava os fundos?

Visitas são tomadas por sinais.
Numa segunda casa pus-me à escuta
de baques surdos embaixo dos louros
e ouvi insinuações sussurradas
acerca de ser vagamente honrado.

moldurado em sua janela,
facas e garfos postos em oleado,
e as cabeças de focas, súbito esboçadas,
perscrutando tudo.

A gente daqui acreditava
que almas afogadas viviam nas focas.
Em marés de lua mudariam de forma.
Amavam música e nadavam por um cantor

que estaria no fim do estio
na boca de caiada meia-água de turfa,
o ombro no umbral, a canção
um barco a remos ao longe na noite.

Quando cheguei aqui você cantava sempre,
um indício do corte do picão
em seu ataque e adejante ascensão.
Alce-o de novo, amigo. Ainda cremos no que ouvimos.

UM GOLE D’ÁGUA

Toda manhã ela vinha tirar água
Qual velho morcego tateando a campina:
O gorgulho da bomba, do balde a algazarra
E o lento diminuendo enquanto enchia
Anunciavam-na. Tenho na lembrança
O avental cinza, o pustulado esmalte branco
Do balde a transbordar, e o penetrante
Ranger da voz como da bomba a alavanca.
Noites em que uma lua cheia sobre a empena
Recuava pela janela para jazer
Dentro da água pousada na mesa.
Onde imergi para beber de novo, ser
Leal à admoestação inscrita na xícara,
Lembre-se do doador, que na boca descora.

OSTRAS

Nossas conchas craqueavam nos pratos.
Minha língua era um estuário se enchendo.
Meu palato curvado de estrelas:
Enquanto eu degustava as Plêiades salgadas
Órion mergulhava o pé na água.

Vivas e violadas,
Jaziam nos leitos de gelo:
Bivalves: o bulbo partido
E o suspiro galanteador do oceano.
Milhões delas rompidas, arrancadas, dispersadas.

Fôramos de carro àquela costa
Através de flores e calcários
E lá estávamos, brindando à amizade,
Depondo uma lembrança perfeita
No frescor do colmo e da louça de barro.

Nos Alpes, metidos em neve e feno,
Os romanos carrearam ostras rumo ao sul até Roma:
Vi alcofas úmidas vomitarem
A fronde-lambida, salmoura-picante
Glutonia de privilégio

E me irritava que minha fé não pudesse repousar
Na clara luz, qual poesia ou liberdade
Inclinando-se do mar. Comi o dia
Deliberadamente, para que seu travo
Me avivasse todo em verbo, puro verbo.

FRUTO ESTRANHO

Eis a cabeça da moça, uma exumada cabaça.
Rosto oval, pele passa, pedras passas como dentes.
Desenfaixaram a úmida avenca do cabelo
E colocaram em exposição um caracol,
Deixaram o ar entrar na beleza coriácea.
Cabeça de sebo, perecível preciosidade:
O nariz partido é negro como torrão de turfa,
As órbitas vazias poços de antigos fermentos.
Diodorus Siculus confessou
Um gradual conforto entre pessoas semelhantes:
Assassinada, desprezada, anônima, terrível
Decapitada moça, a olhar de frente machado
E beatificação, a olhar de frente
O que começara a dar impressão de reverência.

PUNIÇÃO

Posso sentir o tirão
da corda em sua
nuca, o vento
no peito nudo.

Ele infla os mamilos
em contas de âmbar,
freme o frágil cordame
das costelas.

Posso ver o corpo
submerso no pântano,
a pedra pesando,
os talos e ramos flutuantes.

Sob os quais no princípio
ela era arvoreta escorchada
que é extraída
osso-roble, cérebro-pinha:

a cabeça calva
um restolho de milho negro,
a venda uma suja bandagem,
o laço um anel

para guardar
as lembranças de amor.
Pequena adúltera,
antes de a terem punido

tinha cabelo loiro-linho,
era subnutrida, e o rosto
negro-breu era belo.
Pobre bode expiatório,

eu quase a amo
mas teria atirado, sei,
as pedras do silêncio.
Sou o artificioso voyeur

das combas escurecidas
e expostas do cérebro,
das cilhas dos músculos
e dos ossos numerados:

eu que fique calado
quando as irmãs traiçoeiras,
coifadas com breu,
choraram junto ao parapeito,

que fui conivente
no civilizado ultraje,
todavia entendi a exata
e tribal, íntima vingança.

CAVAR

Entre o dedo e o dedão a caneta
Parruda pousa; com arma pega.

Sob minha janela, um som raspante e claro
Quando a pá penetra a crosta de cascalho:
Meu pai, cavando. Olho para baixo

Até seu dorso reteso entre os canteiros
Encurvar-se, brotarem vinte anos atrás
Dobrando-se em cadência nos batatais
Onde estava cavando.

A chanca aninhada no rebordo, o cabo
Alçado contra o joelho interno com firmeza.
Ele extirpava talos altos, fincava o fio luzidio
Para espalhar batatas novas que colhíamos
Adorando a fresca dureza nas mãos.

Por Deus, o velho sabia usar uma pá.
Tal qual o velho dele.

Meu avô cortou mais turfa num dia
Do que outro homem no pântano de Toner.
Uma vez levei leite numa garrafa
Mal rolhada com papel. Ele aprumou-se
Para bebê-lo, e em seguida pôs-se a
Talhar e fatiar com precisão, lançando
Torrões nos ombros, indo mais embaixo atrás
Da turfa boa. Cavando.

O cheiro frio de barro de batata, o chape e o trape
De turfa empapada, os curtos cortes de um fio
Nas raízes vivas despertam em minha cabeça.
Mas pá não tenho para seguir homens como eles.

Entre o dedo e o dedão a caneta
Parruda pousa.
Vou cavar com ela.

VERÃO DE 1969

Enquanto a polícia protegia a turba
Disparando no Falls, eu ia sofrendo
Apenas o sol opressor de Madri.
Toda tarde, no calor de caçarola
Do apartamento, enquanto em bicas eu lia
A vida de Joyce, odores do mercado de peixe
Subiam como o mau cheiro de um coradouro de linho.
À noite na sacada, goles de vinho,
Ciente das crianças em cantos escuros,
Velhas de xale preto junto a janelas abertas,
A atmosfera um cânion a escorrer em espanhol.
Conversamos na volta à casa por prados à luz
Das estrelas onde o verniz da Guardia Civil luzia
Qual ventre de peixe em água por linho contaminada.

“Volte”, disse um deles, “tente tocar o povo.”
Outro invocou Lorca do alto da colina.
EW vimos contagem de mortos e reportagens.
De touradas na televisão, celebridades
Chegavam de onde o real ainda acontecia.

Refugiei-me no frescor do Prado.
O Fuziliaria do três de maio, de Goya,
Cobria uma parede – os braços esticados
Para o alto e o espasmo do rebelde, os soldados
De mochila e capacete, o eficiente
Ângulo da fuzilaria. Na outra sala,
Os pesadelos, gravados no muro do palácio –
Ciclones negros, colhendo, irrompendo; Saturno
Adornado no sangue dos próprios filhos.
Caos gigantescos girando as ancas brutas
Sobre o mundo. Ademais, aquele duelo
Em que dois furiosos golpeiam-se até morrer
pela honra, cavados em pântanos, e afundando.

Pintou com punho e cotovelo, exibiu
Avental sujo no peito enquanto a história investia.

A VISITA DE UM POLICIAL

A bicicleta dele contra o peitoril,
O capuz de borracha de um guarda-lama
A bordear o pára-lama da frente,
Os guidões negros e grossos

A esquentarem ao sol, o “bulbo”
Do dínamo luzente recuado,
Os pedais libertos
Das botas da lei.

O quepe repousava no soalho
De ponta-cabeça, junto à cadeira.
A linha de pressão corria como um chanfro
Pela cabeleira um pouco suada.

Ele tinha desamarrado
O pesado livro-razão, e meu pai
Fazia a contagem das safras
Em acres, varas e perchas.

Aritmética e medo.
Eu ficava sentado olhando o coldre polido
De aba abotoada, o cordão trançado
Preso ao coice do revólver.

“Alguma outra colheita de raiz?
Beterraba de forragem? Abóbora? Algo assim?”
“Não.” Mas não havia um renque
De nabos cujas raízes invadiam

O batatal? Assumi
Umas pequenas culpas e me pus
A imaginar o xadrez na caserna.
Ele se levantou, puxou o cassetete

Mais para o canto do cinturão,
Fechou o livro de cadastro,
Pôs de volta o quepe prato com as duas mãos
E me deu uma olhada ao se despedir.

Uma sombra oscilou à janela.
Ele ajustava a mola do bagageiro
Sobre o livro-razão. A bota impeliu
E a bicicleta foi-se tique, tique, tique

*Poemas do livro “Poemas”, Companhia das Letras, 1998.