Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns, Pernambuco, no ano de 1973. Poeta, tradutor e editor, é Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (USP). Participa de vários projetos relacionados ao campo da literatura e poesia. Dirige, com Natália Agra, a editora Corsário-Satã. É um dos editores da revista de poesia Meteöro.. Foi coeditor, com os poetas Ricardo Domeneck, Angélica Freitas e Marília Garcia, da revista Modo de Usar & Co.

OFICINA EMBOSTEADA

quero compor um soneto de bosta
como poeta algum ousaria escrever
um soneto nascituro, chulo de costa
a costa, um monte de merda a feder

quero que meu soneto, jogo duro,
desperte muitos gorfos de prazer
e, no seu maligno arde monturo,
ao mesmo tempo saiba cair e escorrer

esse meu verso fedorento e obscuro
lêmure de lamúria, é de fazer tremer
a louça frágil do banheiro escuro

todos o lembrarão: sem futuro!
cão lambendo o cu, enquanto, maduro,
opaco enigma, se deixa comover

SONETO ZUMBI
Para George A. Romero

Da alva tumba da página, um soneto
ergue-se. Decidi levá-lo avante,
apesar do fedor cru, incessante,
saindo, feito merda, do esqueleto.

Quinto verso: nem com desinfetante
– tanta podridão neste branco abjeto.
Um zumbi putrefato, gazeante:
cai-lhe o cu, tripas, partes por completo.

Muito triste a carcaça em “carne viva”,
antes tenra, vermelha, muito rara.
Agora, caga o corpo na saliva.

Âmbar de sangue, lua muito clara:
dá trezeguê e ao treze nada diva:
a fera, ensanguentada, fracassara.

LEONARD COHEN JOGANDO FLIPERAMA NUM BOTECO DA COHAB

parece até que encontrou a velha tia Alice
falando com fantasmas
que acabaram de abandonar um brechó
(pareciam as luzes indecisas de
uma estação qualquer de trem)
vermelhos e bombas implícitas

pelas contorções faciais
parece até descrever o monstro

o verão bocejou
algo ininteligível
de sua boca saíram flores
cobriram todo o grama
há uma vilinha logo ali
decoram-na para o feriado
há também uma pequena igreja
e uma escola
e uns cachorros fornicando
bandeiras limpas
como roupas recém-saídas
da lavanderia
o verão glissiglissava
safadamente
a bagaça é feita de
mil esferas multicoloridas
translúcidas

os mil blocos em rede
as saídas e vielas
luzes estouradas no estilingue
charla na xerenga
cacholetada no alvo
de repente:
as mil bolas extras da estação

poço de gravidade
cogumelos elétricos
pontes suicidas
canhões mutiladores

foi naquele seu verso
sob aquela manta melódica
que, perdendo por milhares de pontos,
o século deu tilt

DEAR PRUDENCE

a rua arruma as coisas
dentro da casa
aumenta o volume
dos batimentos
cardíacos
nos dá um centro
brisa órfica, mil arestas
queima de balões de fogo
na hora telúrica

a escrita como nuvem
água oceânica, açúcares
e aminoácidos, códigos,
nacos de lucidez

a simetria dissonante
da música de todos os gestos
dessa cidade que nos assombra
com suas facetas e dobras
umas vezes macumba
noutras, catacumba
um tanto limbo, outro lindo
fim do mundo sambando
na cara de seus inquilinos

seguimos, os loucos, atiçando
a sede na sativa e matand0-a
na saliva viva da língua
rios correntes
florestas de sambas,
sândalos, símbolos
(ópios, ódios, órions)
onde habitamos (todos
desesperadamente lúdicos),
recolhendo, talhadas por água
e fala, essas subversões que
irrigam a pele e trincam o osso
das palavras

E-MAIL PARA WILLIAM CARLOS WILLIAMS

Williams, meu caro Williams,
saca a espingarda e atira na morte
inverte o tempo da luz
a caça, ensanguentada, no chão
como o belo clarão
do trovão
na  noite (desespero
de cismas)
da
tempestade
sempiterna

KASHMIR (UM REMIX TRANSETRADUTÓRIO)

oh! eu sinto sua falta
em primeiro lugar
o amor da minha infância
nos últimos anos, muito!
o que é o amor, ela disse, as flores
na noite seguinte, na figueira
eu tenho uma banana na sombra das árvores
sob a laranja!

*Poemas do livro “Fliperama”, Editora Corsário-Satã, 2020.