Ricardo Domeneck nasceu no dia 4 de julho de 1977, em Bebedouro, São Paulo. Escritor, poeta e artista visual, desde 2002, vive e trabalha como curador e organizador de eventos em Berlim, Alemanha.

Domeneck estreou na literatura em 2005, com o livro “Carta aos anfíbios”. No ano seguinte, a partir da apresentação de um vídeo intitulado “Garganta com texto”, na TV Cultura, seu trabalho ganhou maior notoriedade, passando a utilizar um vocabulário multidisciplinar, movendo-se entre escrita, videoarte e performance. Nesse período ele fez parte de um grupo de pesquisa corporal das técnicas coligidas e sistematizadas pelo coreógrafo mineiro Klauss Vianna, uma grande influência sobre sua poética.

Atuou, em parceria com Cide Piquet, na edição do volume póstumo de poemas de Hilda Machado, intitulado “Nuvens” (Editora 34, 2018), e, com Guilherme Gontijo Flores, na edição de um livro inédito de Maria Lúcia Alvim, “Batendo pasto”, em 2020. Colabora com diversas revistas impressas e virtuais e tem poemas incluídos em antologias de poesia contemporânea brasileira na Argentina, Estados Unidos, Eslovênia, Espanha e Alemanha. Foi coeditor, com Marília Garcia, Angélica Freitas e Fabiano Calixto, da revista de poesia Modo de Usar & Co., e das extintas revistas eletrônicas Hilda e Cabaret Wittgenstein.

TERRA NO CORPO

Uma história da terra
no próprio corpo.

Do pai, a porção
branca da carne,
ascendência registrada
em cartórios por tabeliães,
o sobrenome que retém
do avô a pronúncia catalã
de origem, ainda
que sua grafia se tenha
baralhado, e, da avó,
nomes de cidades
do passado, como certa
Campobasso, que tanto
poderia ser Atlântida.

Do pai, principalmente,
a possibilidade dos convites
às salas de jantar da casa-grande.

Da mãe, o tingir
castanho da pele
de gente cabocla
do interior, sobrenome
proletário de qualquer
zé-ninguém, e o passado
esquecido de ocas,
do estupro de mulheres
ameríndias e africanas
apagado e silenciado
pela história,
mas não pela carne.
A carne lembra-se
e lembra.

Como o pânico irracional
da mãe, a cada gripe,
de que morra a casa toda.

As linhas retas de pais,
lembradas,
e as linhas tortas de mães,
esquecidas.

Mas na língua mesma
resiste
talvez a memória
de um desastre antigo
quando empreteja
o céu e se grita
da casa-pequena
que se corra e tire
a roupa do varal,
que vai cair um toró.

É sempre e ainda
o toró que vem.

E a carne dos filhos,
sem entender bem
o porquê,
deseja e teme
o toró-final
que venha e leve
roupa e varal,
quintal e casa.

CANÇÃO DE BENZEDURA

Havia as mãos da velha, suas rugas, no quintal,
e o cheiro da arruda, e os movimentos cruciformes,
e as palavras em sussurro, e o calor no meu peito.

A benzedeira e suas palavras, e o quintal crescia
em movimentos vegetais, e o calor da arruda
eram palavras cruciformes, com mãos de mulher.

A própria mulher crescia nessa arruda de palavras
e o sussurro era um quintal no peito, as mãos
com cheiro de cruz e fome, e se moviam as rugas.

Eram as mãos, elas eram arrudas que se cruzam
sob o quintal, como se ali se movesse o peito
que palavreia o calor nessa bênção que sussurra.

Sarça ardente nas minhas mãos, e ali vivia Deus:
na arruda, nas rugas das palavras, na mulher
que se movia e era velha desde muitos quintais.

Era um Deus rutáceo, calor vivo como um cheiro
de palavras, o quintal benzia as minhas mãos,
meu peito, e o calor se enfolhava como a arruda.

SUFRÁGIO DA SAXÍFRAGA
.                                                          a Josely Vianna Baptista

Quebra-pedra, for nessa terra
só há se fura o asfalto e vara
a seca e o soco, o fogo e o fato.

As babosas nos quintais vicejam
e aveludam o cabelo de mães.
Ponte aguda entre o ar e o chão

é a espada-de-são-jorge. O sol
não há de estourar mamonas
pelo século todo e a cada hora.

Que samambaia dê logo flores!
e a pipoca estoure em milho
em nossas avenidas, nos sertões.

Esqueceu-se o Conselheiro
de que o vinagre há de virar leite
e o leite há de virar garapa?

Olhem só como já despencam
no colo da hortelã todas as romãs.
Aurora, é porteira escancarada!

DESVIO PARA VER MELHOR

Tão repentina, rápida foi sua partida,
tão estonteante essa distância expandida,
tornou-se vermelho o seu suéter azul.

Olho suas fotos. Nelas o sol brilha
refletido em cílios, pálpebras, pupilas.
Uma estrela morta que fia sua luz.

E deste sol que esquenta olhos, cus,
gasta pouco a pouco toda sua energia,
você se escondia como um avestruz.

Mas, querido, tudo no planeta conspira
por nós em nome de vidas mútuas:
os genes de peixes, os jogos de exus.

IMITAÇÃO DE CECÍLIA MEIRELES NUM SÁBADO ESTRANGEIRO

Em prateleiras etiquetadas da quitanda
jaz a floresta útil, organizada e civil.

Na cabeça definha o pomar da infância
simples: mãe e vizinha, goiaba e abiu.

Sobe o número de hectares do mundo,
incha o mapa, exótico: istmos, fiordes.

Mas o açude do bairro era mais fundo,
o reino vasto, medido em quarteirões.

Na cama, uniam-se ao canto dos galos
o pio do bem-te-vi e do fogo-apagou.

Agora mal nos vemos e nem cantamos,
o alarme de incêndio é o que restou.

*Poemas do livro “Cabeça de galinha no chão de cimento”, Editora 34, 2023.