Gil de Carvalho nasceu em Lisboa, Portugal, em 1954. Poeta e tradutor, possui vasta obra, entre poesia, ficção e prosa. Muito discreto, mesmo assim seu nome repercute bastante na poesia portuguesa dos últimos 30 anos. Sua poética é caracterizada por um olhar vigilante de um viajante do mundo, trazendo à tona, através da geografia e de manifestações humanas, a imagem contínua da nossa história.


UMA CIDADE DE ESCRAVOS

Surge o andorinhão da promessa do mar.
Adivinha, nos vestidos curtos, o pardal
Engravatado que por baixo das tuas pernas
Vem dançar.
Aqui, desta muralha suspensa do reboco
Cedo a mão alcança os números, da porta,
Envidraçada. Seta que do bar saía, e se
Cravara na palmeira, estremunhada.
Vibrava assim da tua urbe o emblema? Estugas
O passo, e, muito direita, entras no Forte
Abandonado.

EM TROCA

Da Europa, África
Passas em câmbio
De um pouco de sangue.
O istmo renovam
Do antigo porto.
Transfusões a frio
Erguem funcho e esparto
De paredões recentes:
As pequenas tendas
Postas junto ao mar.

A chama refrigera
Uma passagem: vidraças
Cobertas de vinil e lona.
O que une o espaço dos teus
Dedos são janelas, sem
Estores, e anéis de princesa.

Patas no rosto
Com sabor a fumo
– De numerosos escritos.
Casas p’ra aluguer
Num e noutro lado
Do Estreito.
Vai em ti um trato,
As pregas no cimo e o claro meato.

DE INVERNADA

O primeiro dia
Bate o sol nos fios.
A estepe.

Visível todo o ano
Num entalhe o vento.

Um pião errante, e as constelações
Junto a um copo de água.

RECORDE

À mesa dos cafés, a carne.
Quase nua, palpita dentro
De pequenos cronômetros.
Recorda, dia a noite, que
Afinal os obstáculos perduram
Sempre no interior da chama.
Que o Eterno vacila sobre a cama
Destes animais litúrgicos, votados
Que somos – ao amor, à morte, ao abandono.

PERINEU

Um velho racista
Escuta subindo
O Pulso à caldeira.
A rota de regresso.
Tal a madeira
De um navio, recente.

A VIDA ACONTECE

Enquanto dure a viagem a vida acontece,
Dizias tu. Sente-se mais, neste fueiro
O mar, e a condição. Em 1973 o trânsito
Era lícito, e o tráfico parava, a jusante.
O simples roubo era tortura que chegava
A uma varanda, e acenava: o pequeno assaltante
Apanha de cavalo-marinho, e adormece ao sol
Entre Madrid e Lisboa.
A sair o perfume do coração da frota, no ano
Seguinte uma das sardinheiras perguntou quem
Levava guia. A língua por dentro da boca
Depois mal lhe serviu, areada no que tinha
Perdido: a procissão, branco nos dentes chegara
O atentado.
Pois é verdade – No hacer uso durante las paradas.

*Poemas do livro “Tarantela & Viagens”, Fenda Edições, 1998.