Neide Archanjo nasceu na cidade de São Paulo (SP), em 1940. Poeta, advogada e psicóloga, foi uma das mais ativas poetas de sua geração. Iniciou na literatura em 1964, ao publicar o livro “Primeiros Ofícios da Memória”. Nas décadas seguintes, aliou a produção poética ao exercício da advocacia. Em 1969 criou o movimento “Poesia na Praça”, exposição de varais de poesia na Praça da República, em São Paulo, junto com José Luiz Archanjo e Ilka Brunhilde Laurito. Teve participação, em 1980, na criação e implantação da Oficina Literária da Biblioteca Mário de Andrade. Integrou o programa O Escritor na Cidade, organizado pela Fundação Biblioteca Nacional, em 1993, em Recife (PE), Curitiba (PR) e Fortaleza (CE). Neste mesmo período participou no projeto Encontro de Escritores, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Faleceu em 2022, aos 84 anos, no Rio de Janeiro.

COMPLACÊNCIAS

Tua voz
pequeno seixo opaco
recolhido nas areias da memória.

Rapsódia de nenúfares
algas rochedos.
Incólume.

Não sabias o que dizia
e eu não sabia
o que ouvia.

O TEU CORPO EM MINHAS MÃOS – IV

Nossos sexos
rubros como romãs
abertas ao meio
roçavam
os contornos do desejo.

E regalos escorriam
pelos dedos.

A dor
era saber
que em minha vida
isso jamais se repetiria

A NÓS

Para que não esqueçam
os nomes daquelas
que foram ofendidas
em sua condição primeva,
este poema.

Suas conquistas hão de ficar
para que as gerações celebrem
os feitos valorosos
em águas e terras,
obras e vozes e amores
filhos
amores refletidos.

Povoem este poema
fêmeas punidas
pelo que tiveram de melhor:
seus assombros
suas epifanias.

O tempo em degredo falará
dos roteiros esquecidos
de cada mulher
abismo de se saber sozinha
e, todavia, ressoar.

O ENCONTRO

Habitar o silêncio
é renunciar a desejos
fantasias
saltos abismos trilhas
trapézios algaravias.

E no entanto
há de resistir o fio da poesia
a bordar o verbo
no dorso
que nos conduzirá
a seus umbrais.

Ali alguém estará,
e porque afinal fomos inquietos
às vezes banais
outras incompletos,
contabilizará
cada ato
gesto ou delicadeza.
Porque na morte
apenas as palavras nos receberão.

*

O tempo
quando não se espera mais nada
passa lento
tem este gosto de bruma.
E o amigo
outrora feito de palavras
hoje se cala.

Diante do corpo, do cigarro
a colina verde dos sonhos se eleva.
Eu vejo
depois também me calo.

O instante machuca
e a vida às vezes nos repele.
Resta ficar quieto num canto
ouvindo a manhã. Depois ir
lentamente ao encontro de tudo
que nos foi arrancado
e no entanto repercute
submerso.

*

O Tempo é este.
E o relógio nada marca
além das horas parcas
não aquelas que abrem e fecham
as portas de Zeus.
Em meio a trevas e insônias
a hora se desfaz
areia aprisionada na ampulheta
praia sem saber do mar.

O Tempo é este:
o poema e suas perdas
fragilidades calcinadas
e no entanto tardes e jardineiros
perfumes de setembro
momentos em que a vida
é clareira entre ramos
encontro e repouso
divino Odisseu
avistando Ítaca.

O Tempo é este:
eras bordadas por vivos
e por mortos
florescem no aclive e no avesso.
Há quase dois milhões de anos
entre águas árvores e répteis
Australopithecus Boisei,
o pai,
espreita o espaço breve do ser
que rebelde se debate
contra toda medida.
E marcham ossos
marcham vísceras.
Marcha a vida.

O Tempo é este:
ruminamos cardos
à espera de um abraço de amor
ainda que tardio
e perdido na memória…
enquanto Chronus sem piedade
devora a carne macilenta
de seus filhos
(pálpebras sempre abertas)
e de outros e de outros
efebos que há pouco
cantavam pelas ruas
o prazer
nus e firmes
como o ouro.

O corpo lembra
a alma desespera.
E às margens um menino chora.

O Tempo é este:
abriga o grão de pó
de cada homem
parcela do mundo
que Deus acaricia e revela.

E balanço o chapéu de Van Gogh
nos campos amarelos de trigo.
Do entulho nasce o murmúrio
das pedras.

O Tempo é este:
e é mais tarde do que nunca.
De que ris, Baudelaire?
O douleurl! O douleur!
Le Temps mange la vie.
Luxo calma e volúpia
três sóis violetas
brilham ainda nas trevas
deste drama.

O Tempo é este:
o rosto que os anos transformaram
resguarda os que já passaram
signos traçados em seus espelhos
algum rei que nunca fui
as letras do meu nome.

Vida que sonha e canta
misteriosas
sei que morro e renasço
numerosa e una
como as rosas.

*

Quando o ruído de uma folha caindo
era uma questão de vida ou de morte
o Tempo podia ser ouvido
como um verso nítido e belo
escorrendo por dentro.

ESTELA DO POEMA

Alcançar o momento
em seu claro labirinto
e desfrutar
a dor e a alegria
de nele estar presente.
Não procurar moedas de prata
nem as palavras
que já se foram
sem substituir o viver.
Emergir
e
quando suspenso
reluzir ao sol
como um peixe.

*Poemas do livro “Todas as horas e antes – poesia reunida de Neide Archanjo”, Editora A Girafa, 2004.