Harkaitz Cano Jauregi nasceu em Lasarte, município de Guipúzcoa, na Espanha, a 4 de agosto de 1975. Poeta, escritor e advogado, tem carreira literária extensa e premiada, também publicando outros gêneros como contos, romances, crônicas, novelas e literatura infanto-juvenil. Escreve principalmente em língua basca. Cano participa de diversas apresentações combinando literatura com música, dança e outras artes, e escreve regularmente letras para diversos cantores e grupos, bem como roteiros. Atualmente vive na cidade de San Sebastián.
12 SARDINHAS VELHAS PARA CONSUMO IMEDIATO
Um bom livro de poemas deve ser
como uma caixa de peixes.
Nutritiva e fresca, fonte de fósforo e cálcio.
Ou corrimento fedorento
que nos impulse a sair fugindo
dela, presos ao pânico
uma caixa de peixes podres e cabeças carbonizadas
de dentes e olhos afiados.
Um dos dois.
É assim que deveria ser,
como um bom livro de poemas,
nossa vida.
NADA SOPRANDO NO VENTO
Se não há vento
a bandeira não é mais do que um trapo
Se há
tudo muda, no entanto:
e a bandeira então
volta a ser
um trapo.
A POESIA É FICÇÃO (E UM CHIFRE)
Não me considero uma pessoa demasiadamente atormentada,
porém às vezes a resignação se apodera de mim.
O que vamos fazer, tudo muda.
Um antigo companheiro de classe está a ponto de casar-se
com uma menina do opus dei;
outro leva mais de nove meses no mar
pescando ilegalmente;
nove meses, toda uma gravidez,
talvez tenha se convertido em pessoa no ventre do mar,
já que ele fez isso na casa de sua mãe.
Às vezes uma tremenda resignação se apodera de mim,
porque, quando a sua solidão bate com a minha,
me faz um dano.
Este sentimento parece, como posso dizer,
a descobrir que quando fazemos vinte e um anos
as meninas que tinham nove quando nós tínhamos treze
têm agora dezessete.
Descobrir ao final de uma noite, bruscamente,
que esse amanhecer culpado e aqueles seios macios
que nunca ousamos imaginar que chegaram a sê-lo
já não serão nossos.
Não sei se me entende dito assim.
Que não nos damos conta disso ou aquilo,
que nós temos esvaziado todo os copos da nossa ingenuidade.
Que perdemos a maior felicidade pelo mais ínfimo erro:
por isso, os errinhos são os mais dolorosos.
Os grande erros, nem tanto.
Podemos nos aconchegar a viver dentro deles,
ou dar voltas ao redor.
O que fazer, no entanto,
com um erro que não é mais do que uma asa de inseto?
A risada é a única terapia
para certos assuntos que nos preocuparam.
Mas nem mesmo isso é suficiente.
Como tampouco é cobrir espelhos com lençóis
para ser invisíveis. Sobretudo, isso.
E que tudo que perdemos na vida,
perdemos por não executar a tempo,
há muito tempo, um adágio, uma saudação
ou um gesto
. de cumplicidade.
ESTRANHA FORMA DE AMAR AO PRÓXIMO
Queridos arqueólogos do ressentimento:
enterradas na viva cal dos olhos
encontrem suas melhores virtudes.
Amigos que vivem dias de vinho e rosas,
por favor, não me escrevam mais
para me avisar o bem que todos vão.
O pacto de amizade que firmamos
não recorre cláusula semelhante.
Eu coleciono adesivos e desgraças,
a maldade, o grosseiro comportamento de suas proles,
fotos dos locais
onde seus cães e gatos se afogaram.
Conta-me quantos parentes se foram
negando herança alguma.
Quão tristes estão desde que sua amante
desapareceu sem deixar vestígio.
Mantenha-me informado sobre enfermidades incuráveis,
de seu vício a drogas pesadas e leves,
do cansado e insuficiente de suas vidas,
desse prêmio à crítica
que, imerecidamente, não lhe foi concedido.
As coisas estão muito mal, por favor os peço:
Não mostrem em público sua ostentosa alegria,
porque do contrário alguém (talvez eu mesmo),
pode entrar de noite em sua casa
com um rifle para caçar veado,
para cobrar a dívida.
E acredita-me: Já que os amei,
essa a última coisa que os desejaria.
NOTA DE RODAPÉ
Uma foto sem truque. Uma garota
cruza o rio com a ajuda de um anjo.
Uma garota alegre e com tranças, que ri
de algo que não lembrará quando recuperar a foto,
e que não imagina até mesmo
tudo que aparece em seu caminho.
E que ainda sim se lembra,
que era ela a garota alegre e com tranças da foto,
e que preferiria estar chorando na imagem,
sempre quando isso
lhe trouxesse alguma felicidade
baseada em razões que alguém lembra
em um futuro sem fotografias.
A PRIMA DE SYLVIA PLATH
Caminhava segura de si mesma,
confiando no chão que pisava,
a forma de se vestir também era radiante, enérgica,
pura felicidade: jaqueta escandalosas, calças folgadas.
Despediu-se de mim da sacada
quando me viu indo trabalhar.
Ombro que suportava nosso ânimo decaído,
sempre disposta a um café se te chamávamos,
tão agradecida com tudo que a vida lhe deu
quanto pelo o que conseguiu por méritos.
Nunca nos esfregou os seus problemas,
nunca vi sair qualquer reclamação de seus lábios.
Rosto alegre, relaxado;
Em seus olhos, uma candura que durava desde a pré-história.
E sabe o que é o que mais me incomoda?
Que são aqueles como você, que, no final,
levantam o cotovelo e juntam a corda em argolas
para resgatar os náufragos,
para que com essa corda
possam se pendurar no alto de um galho.
*Poemas do livro “Alguém está na escada de incêndios”, El Gaviero Ediciones, 2008.
Tradução de Igor Calazans para o Recanto do Poeta