Maria da Conceição de Deus Lima, mais conhecida como Conceição Lima, nasceu em Santana da Ilha de São Tomé, em São Tomé e Príncipe, na África Ocidental, a 8 de dezembro de 1961. Uma das principais vozes femininas da poesia do período pós-colonial, fundou o semanário independente “O País Hoje”, em 1993. É licenciada em Estudos Afro-Portugueses e Brasileiros pelo King’s College de Londres. Reside e trabalha como jornalista e produtora dos serviços de Língua Portuguesa da BBC. Já publicou poemas em jornais, revistas, e antologias em vários países.
A obra poética Conceição Lima funciona como voz de consciência para a Europa devido ao sofrimento que tem ocorrido há séculos na sociedade são-tomense (escravatura, colonialismo). Apresenta um poesia que também mostra o descontentamento com os ideais que não se realizaram após a independência.
A outra paisagem
Da lisa extensão dos areais
Da altiva ondulação dos coqueirais
Do infindo aroma do pomar
Do azul tão azul do mar
Das cintilações da luz no poente
Do ágil sono da semente
De tudo isto e do mais –
a redonda, lua, orquídeas mil, os canaviais –
de maravilhas tais
falareis vós.
Eu direi dos coágulos que mineram
a fibra da paisagem
do jazigo nos pilares da Cidade
e das palavras mortas, assassinadas
que sem cessar porém renascem
na impura voz do meu povo.
Ignomínia
Enquanto o fio da catana
avançava sobre o medo encurralado
o mundo espreguiçava uma pálpebra –
hesitava.
E quando o olho da câmara
desventrou enfim o silêncio
um metódico vendaval avermelhara
para sempre as águas e os campos.
As consciências
que no universo o caos ordenam
instauraram a urgência dos relatórios
e a estatística dos esqueletos.
Ruanda ainda conta os crânios dos seus filhos.
Os pequenos tiranos
Os pequenos tiranos
que fundaram um reino ao pé da sua tristeza
Os pequenos tiranos que não conquistaram os mares da China
nem os domínios do Manicongo
Os pequenos tiranos que tarde escalaram o tejadilho
e do alto avisam um globo minguado
Os pequenos tiranos arrastam p’los corredores
sapatos que iluminam a sua missão
e engendram em timbradas pastas secretas linhas de ação.
Vendam os olhos à faísca que na dúvida tresluz
e sussurram o édito em minúsculos conclaves
porque temem das palavras o eco e o rasto.
Vivem barricados nos próprios passos
pois ser suave e se lento, julgam,
é ser clarividente é ser sábio
São homens estreitos e magros e lentos
os pequenos tiranos
que sonharam suspender os ponteiros dos relógios.
Não sabem que são cegos e tiranos os ponteiros dos relógios
e quando a tarde derrota a urgência do memorando
trancam devagar a porta do seu reino
e naufragam num mundo que agrava
o peso do corte dos seus fatos.
Os pequenos tiranos
são homens estreitos e magros e lentos
que não conquistaram os mares da China
nem os domínios do Manicongo.
Temem das palavras o rasto
e sussurram o édito em vazios conclaves
para ampliar o eco da sua perpétua infância.
Espectro de Guerra
Meu pai, preso e torturado em 1953, andava esquisito
e cochichava muito com a minha mãe
à noitinha na varanda.
Às vezes, ouvia a palavra guerra e a palavra Nigéria
e a palavra Biafra.
De repente o aeroporto ficou maior, a cidade aumentou
as ruas ganharam novo movimento.
Aviões chegavam e partiam, partiam e chegavam
muitos aviões.
Homens altos e brancos, vestindo calções falavam na praça
uma língua estranha.
Homens altos, cabelos vermelhos, pintinhas na cara
falavam na praça uma estranha língua.
Homens altos e negros vestindo calções andavam na praça
dizendo yes.
A rua do Rosário, que tinha má fama, passou a ser muito
mais animada.
E na escola, o lanche passou a ter corned beef e milk shake.
Gostávamos tanto de milque chaque que o comíamos em
pó, sem ser batido, às escondidas.
À tardinha, incríveis madres, madres negras, negras madres,
passeavam na avenida aqueles meninos. Eram pequenos
como nós, mas eram muito magros aqueles meninos.
Um dia fui ao hospital e vi esqueletos. Eram pequenos
como nós e eram esqueletos. Só tinham cotovelos olhos
e joelhos.
Estavam deitados nas camas, muito quieto, presos
a um fio com balões de vidro.
Eram muitos e vinham de noite nos aviões.
Não sei quantos saíram do hospital aumentando
para os seus ossos.
Não sei quantos ainda se lembrarão de São Tomé.
Quantos depois terão ingressado nas forças armadas?
Sei que certos poemas juntam os versos como se os
deitassem numa vala comum.
Certo poemas sentem dó da metáfora, trancam a porta
na cara da rima.
São vítreos olhos em flácidos corpos.
O sangue na pedra, a fisga tombada, uma tíbia
partida.
Ou a enxuta memória de quem não sofreu, não morreu –
apenas olhou.
E gravou a visão do demônio no quintal.
*Poemas do livro “A dolorosa raiz do Micondó”, Geração Editorial, 2012.