Micheliny Verunschk nasceu a 10 de julho de 1972, em Recife, Pernambuco. Poeta, escritora, crítica literária, compositora e historiadora brasileira, é Mestre em Literatura e Crítica Literária e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo. Em 2004 foi finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, com o livro de poesia “Geografia íntima do deserto”, sendo a única mulher estreante e também a mais jovem a ficar entre os dez finalistas. Venceu os prêmios São Paulo de Literatura, em 2015, na categoria “Melhor Romance”, o Jabuti e o Oceanos, ambos em 2022, com o romance “O som do rugido da onça”, e o Prêmio da Biblioteca Nacional, em 2022, com o conto “Desmoronamentos”.


Memória

O meu pai
possuía uma das asas
muito negra.
E dele herdei
estas estrelas na testa
e esta noite excessiva.
De minha mãe
lembro apenas
clarins e água
e que cantava canções de janeiro.
As pedras brancas
deslizam suaves
sobre a asa muito negra
que foi de meu pai.
E eis toda a lembrança
que tenho da pátria.

Um Suicídio

A aranha
delicada
lambe-me
entre os dedos
e uma luva
de veludo negro
se espalha por todo o braço.

Do outro lado,
a outra mão,
pálida como a neve
sangra maçãs
sobre um bilhete
inacabado.

Não há espelho
ou beijo
que as desperte.

Paralisia.

O Fazedor de Sonhos (ou a Rede)

Um sonho é chamado
como nuvens de chuva
que se agregam pelo vento.
Vem de longe
de onde nem lucidez
nem pensamento se podem traduzir.
Coágulo
cogumelo
incha artérias
filamentos
prestes a explodir
talvez a cidade inteira.
Armado de relâmpagos
inicia o jogo.

Ofício

Como um rei
que sonhasse
um círculo
um mármore
um castelo
e dormido
seu olhos declarassem
o Belo:
uma lágrima
a perfeição
a luz
o verbo.
Como um Deus
que criasse a Beleza
muito embora fosse cego.

Cena Suburbana

Os deuses dos olhos do gato
inquirem a alma da costureirinha
e lambem as mãos do triste:
e quão escuro é o poço
em que mergulham aquelas mãos,
sabem os deuses,
por isso mesmo se aconchegam nelas.

A costureirinha, não,
não lhes dá intimidades
e enxota o gato
que com ardis de homem,
ondula macho entre as suas pernas.

Sobre o Poema*

não necessito de outro chão
para andar
que não este poema.

a pedra do vocábulo
que ultrapasso
fere meu dedo
com seu aguilhão de zargun.

este poema
território aberto
para além do mapa.

este poema
me alerta.

*Poemas do livro “Geografia Íntima do Deserto”, Editora Fósforo – Coleção Círculo de Poemas, 2024.