Domício Proença Filho, nasceu a 25 de janeiro de 1936, no Rio de Janeiro. Poeta, professor e pesquisador em língua portuguesa e literatura brasileira, é o quinto ocupante da Cadeira 28, da Academia Brasileira de Letras, eleito em 2006. Foi Presidente da ABL durante os anos de 2016 e 2017. Dentre os diversos prêmios na carreira, destaca-se os títulos de Personalidade Cultural dos Anos de 1982 e 1992, dados pela Associação Brasileira de Críticos de Arte de São Paulo e pela Associação Brasileira de Escritores (Seção Rio de Janeiro), respectivamente; Também ganhou a Medalha Tiradentes, pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em 1995, e “Doutor Honoris Causa”, pela Universidade Clermont – Auvergne, da França.
I – O Homem
A imagem
azeda
a mesa posta:
o homem
(era um homem)
expõe o rosto
crestado pela seca
os olhos de esperança
carcomida
na magia da eletrônica
e do mito.
O homem
(era um homem)
impávido colosso
antes de tudo um forte
ergue entre os dedos
tensos, sequiosos,
o fruto da vitória
o louro da coroa:
o homem
(era um homem)
caçara em sua míngua
o pão
de cada dia
e o exibe
ao mundo
imagem da conquista
no rio seco
da existência amara.
O homem
(era um homem)
desenhava leve
disfarçado riso:
assegurou
a láurea nesse jogo
perene, corrida
de rudes obstáculos
vai dividir
o orgulho do seu feito
com a mulher
os filhos
na mesa dessa lauta
e parda refeição.
Ei-lo inerte
no espaço da comunicação:
exibe em cores
a glória dos despojos
a paga do seu ato
de viver
na condição da míngua:
entre os dedos
na altura da boca
assume o quadro
o objeto central
desse retrato:
o homem
(era um homem)
pendura sua fome
no prato dos sem nome:
um rato.
II – O Rato
O rato
do banhado
pendurado
na tela
açula
morde
pesa
nos dedos
magros
e nos olhos
telespectantes.
A fome
em plano americano
tão próxima da morte
fome-imagem
sutil desassossego:
– é a traça do Destino
triste sorte…
A palavra
olhos-lábios eletrônicos
ilumina
compensatória
ventos solidários
graves
lágrimas
gestos
mudos.
Na alma,
telespectadora,
a intranquila calma
mastigada
no nível do discurso
fio de uma culpa
antiga
recidiva:
– a vida florescerá
na margem dos açudes
dessas siglas
alimentadas
dessa fome
seca.
Os sonhos infantis,
moldura avinagrada,
navegam no deserto.
Bocas ressequidas
prelibam tetas de cacto
mãos ávidas, crestadas,
a cavar poços exangues
onde só pedra
medra
dolorosa.
O sol
traça nos rostos exauridos
a vitória
da geografia
antecipada.
– Porque Deus quer,
é sina…
E os bem-aventurados
olhos velhos
ossos ralos,
peles
esperam.
O rato multíplice
toma conta da sala de jantar
da sala de visitas
do quarto
da cozinha
da praça da cidade,
ventres de ratos gigantes
avassaladores
explodem
nas telas
imaculadamente brancas
chovem sobre as mesas
e as consciências
restos de vísceras
corações
rostos de lama seca
e uma raiva imponente
avinagra momentaneamente
a ceia
de um país de gordas
maravilhas…
III – A Fome
Essa fome
pendente
dos dedos
desse homem
clama no deserto
sem gafanhotos
ervas ou raízes.
Ninguém ouve
o silêncio
dessa imagem
palavras sem profeta
pedra podre
no ventre
da catinga.
E no entanto grita.
Chega aos ouvidos
como se não fosse
magoa a vista
como se não fosse
e morde a alma
dos telespectadores
como se não fosse.
A contrapelo, a falsa
anestesia:
– um quadro a mais, apenas,
na revista da semana.
Essa fome,
lâmina acesa,
insiste,
incomoda os olhos,
a indiferença,
derrama-me pegajosa
no estarrecimento
dos rostos aturdidos
como água
de poço
estagnada.
E o homem
persiste
congelado
nessa quadro
rosto de pedra
áspero, acre, rude
estranha Mona Lisa.
Um remoto controle
em desespero
acende cores, novas,
à procura de estrelas
nos longes dessa noite
fraturada.
Para além da imagem,
perdura
o rosto,
o rato,
a fome,
dos sem nome.
Câmbio
Mudam-se os ventos, mudam-se as verdades,
e muda a fé, a esperança e a caridade,
muda o corpo, o pensar, os sentimentos
e muda sempre a face do momento
a Terra, a Lua, o sol, galáxias, cometas
tudo passa
no Universo
muda o ar,
muda a água
muda o fogo
e o tempo
muda o verso
a palavra
a geometria
o sentimento puro de Maria
a ciência, a filosofia
e o ritmo
do mundo
muda o amor,
muda até o sofrimento
e a neurose, pesar da resistência.
Resta o que foi, matéria de memória
revivida e a sede
do próximo e incógnito minuto.
Nostalgia
Enquanto foi memória, foi saudade
do que podia ter sido e do que viria a ser,
sempre a carência, jamais a completude,
ansiosa espera a luz do amanhecer.
Nunca o sol, a neblina sempre, e densa,
véu cinzento de angústia e de noturno,
penumbra na ilusão da plenitude,
e, pouco a pouco, a sombra, o não, o nada.
Enquanto foi saudade, foi memória,
e a estranha sensação de tudo fenecer.
Estranha sensação de tudo fenecer
E, pouco a pouco, a sombra de não, o nada
E a saudade do que não foi e poderia ser.
*Poemas do livro “O risco do Jogo”, Editora Prumo, 2013.