Reynaldo Valinho Alvarez nasceu no Rio de Janeiro em 1931. Poeta bilíngue por origem portuguesa e espanhola, é autor de quase 300 livros, tendo obras traduzidas para diversos idiomas. Recebeu muitos prêmios, destacando-se o da Fundação Biblioteca Nacional (1995) e o Prêmio Jabuti 1998 de Poesia, da Câmara Brasileira do Livro. Faleceu em 2021, no Rio de Janeiro, aos 90 anos.


as sementes

tens na lavra do poema
a solução exata
do obscuro problema
que o cérebro maltrata

é uma pedra que lavras
com escopro e cinzel
esculpindo palavras
no branco do papel

e enquanto a pedra cortas
com a agudeza do fio
as sementes transportas
para o teu lavradio

o arrepio

brilham as luzes pálidas da rua
tal qual se cada uma fosse a lua

mas na vila de casas uma luz
não é mais do que um ponto
o contraponto
que nela se introduz

a noite decompõe luzes e sombras
e no teu leito suado tu te assombras
com silhuetas vultos e ruídos
de conversas sussurros e gemidos
enquanto os ratos correm sobre o forro
e te encolhes sob a aba de teu gorro
ouvindo o miar das gatas que no cio
levam à treva quente um arrepio

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Condecora-se o abutre. Já a presa
recebe o seu quinhão de terra acesa
nos fogos do verão. Faz-se o retângulo
entre quatro paredes. Em cada ângulo,
uma barata espia a caixa escura
e, muito diligente, já se apura
no olfato, a pressentir o odor da amônia.
Mãos brutas dão por finda a cerimônia.
Baixou, enfim, a presa ao anonimato.
Ninguém olhou o ato caricato
e logo, em meio à estival fornalha,
sussurra-se o elogio do canalha
que a medalha ganhou. Depois, mais alto,
o elogio prossegue, aberto e incauto.

a essência

tens de ceder os dias
ao impulso da procura
de rios e de rias
em uma terra obscura

tens de cortar a frio
com o gume do poema
o vermelho apostema
suportado com brio
de quanto não se rende
mesmo passado a fio
de espada ou de navalha
e mais fundo trabalha
mais da luz fugidio
na essência do vivido
mas nunca possuído.

veredas tortas

de foices e cutelos
fios brutos
que cortam e mutilam
não sabias então

até mesmo os argutos
não se podem furtar
aos próprios lutos

o gesto inculto e inerme
com que acolheste o golpe
inoculou-te o germe
do medo que transportas

medo que há de guiar-te
para invisíveis portas
pelas veredas tortas
que vão a qualquer parte

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entre as sombras da noite em vão garimpas
na ânsia de achar faiscante pedras limpas

o lodo em que te enterras não te oprime

quando lavas as mãos lavas o crime

*poemas retirados do livro “Lavradio”, Editora Myrrha, de 2004.