Sebastião Uchoa Leite nasceu em Timbaúba, Pernambuco, no dia 31 de janeiro de 1935. Poeta, ensaísta e tradutor, venceu o Prêmio Jabuti de Poesia, com o livro “Antilogia”, em 1980. Traduziu obras de vários autores como Julio Cortázar, Lewis Carroll, A. M. Krich, Ângelo M. Ripellino, Stendhal, Octavio Paz e François Villon. Faleceu no dia 27 de novembro de 2023, no Rio de Janeiro.


Um olho que olha para dentro

Nessa história há um buraco
em círculo por onde se vê
a sala toda
e não há ninguém dentro
Por onde o herói
espia e não vê
NINGUÉM
O artista (Roy Lichtenstein)
enquadrou a metonímia
AND THERE’S NOBODY IN IT
o herói repete na tela
Imaginem um círculo menor
onde não se veria mais
todos os ângulos:
como saberia o herói detetive
se havia ou não alguém?

Metassombro

eu não sou eu
nem o meu reflexo
especulo-me na meia-sombra
que é meta da claridade
distorço-me de intermédio
estou fora de foco
atrás da minha voz
perdi todo discurso
minha língua é ofídica
minha figura é a elipse

Pequenas ideias fixas

coisas limpas
de ar-condicionado sem pesadelos
escritos rasos
le mot juste
objetos diretos colocados
precisões
de ostinato rigore
lancetas bisturis agulhas
conceitos vermes
.  “la consciencia me sirve de gusano
grafitti críticos
.  “somos o carnaval das multinacionais”
observações ao acaso
.  “um leão
é feito de carneiros devorados”
do poeta da ideia fixa
coisas secas
escritos de gravetos
greves
inscrições de w.c.
.  “uma coisa é certa
poeta de privada
vive inspirado na merda”

Postcard

Ezra Pound
(olhando
de viés)
MoVe aMONg the LoVers
of perfection aLONe

Gertrude Stein (mão
no bolso do casaco)
boxeur das letras
com Alice B. Toklas em off

Rilke (dedos
cruzados) olhando
para baixo: “Rosa, ó pura
contradição etc.”

Mallarmé (xale xadrez
nos ombros) com a plume
“sur le vierge papier”

Eles pensavam que dominavam
essa áspide

Um outro

(quando acordo no entressono vejo-me
como se estivesse fora de mim mesmo:
é uma espécie de susto:
ali estou eu
parado como se fosse um outro
contratado para cometer um crime
quero voltar para dentro do sono
dentro do subsolo da mente
onde me jogo
e me dissolvo
e me abandono)

Drácula

esvoaço janela adentro
estou aqui ao lado
do teu pescoço longo e branco
com meus dentes pontiagudos
para esse coito tão vermelho
você desperta em transe
esvoaço outra vez
à meia-luz dos lampiões
de volta à minha máscara
quando entro na sala
com a cara distinta e lívida
de olheiras esverdeadas
a minha imagem em negativo
não se reflete no espelho
você solta um grito de horror
esvoaço janela fora

*Poemas do livro “Ciranda da Poesia – Sebastião Uchoa Leite”, Editora UERJ, 2010.